Todas nós, veteranas no oficio, somos frequentemente procuradas por moças que sentem em si a imperiosa vocação de escrever. Pedem-nos conselhos, citam coisas nossas que leram, mostram-nas as suas próprias produções, cumprem enfim a rotina clássica do principiante junto ao medalhão: um pouco de lisonja, um pouco talvez de inveja e bastante desdém juvenil.

Alegam todas que nasceram para escrever. Pois, de princípio, não acredito que ninguém nasça para escrever. A gente nasce para a vida e para a morte, ou, como dizia Lampião, para amar, gozar e querer bem. Escrever é uma arte postiça e tardia, muito longe da espontaneidade do canto ou da dança; o seu aprendizado é penoso, mesmo se a gente se refere ao aprendizado propriamente técnico, o traçar das letras, a formação das sílabas, das palavras, a pontuação.

Se alguém nascesse para escrever, haveria de nascer logo escrevendo; ao mesmo tempo que dissesse papá e mamã, tomaria do cálamo e traçaria os seus balbucios. Assim como um patinho recém-nascido nada.

Fixado este ponto, ― isto é, que ninguém nasce para escrever, que ninguém nasce com a sina imperiosa, iniludível de escrever, mas antes impõe a si próprio aquele esforço, com muita lida, muitos erros e recuos, pergunto eu: para que escrever?

Mormente se tratando de mulher. Porque o homem, criatura mais ou menos folgada, não tem na realidade nenhum compromisso com a natureza; ou se os tem, pode satisfazê-los num minuto. Sobra-lhe tempo para as ocupações criadoras ou destruidoras, a escrita, as artes plásticas, a guerra, a mecânica, o estudo. Mulher, não. Desde o berço, traz seu ofício no corpo,

Escrever para quê? Para exprimir-se, revelar-se? Ora, para isso a gente fala, conversa. Para ser festejada, endeusada, criar um círculo de admiradores e fãs? Mas para esse fim poderá a mulher usar a cara ou o corpo, se os tem apresentáveis. Se os não tem, não conte muito com o tal círculo, embora escreva como um anjo. Há uma misteriosa correspondência entre a beleza física de uma mulher e a admiração despertada por seus dotes intelectuais. Quer transmitir emoção? Mas nesse caso por que não tenta o balé, a música ou o teatro?

A nós, mulheres, o que convém são as artes interpretativas. Considero o teatro, por exemplo, a arte feminina por excelência. No teatro a mulher pode expandir tudo que tem valor dentro de si, com aproveitamento máximo ― o talento, a beleza, a graça, a voz, o porte, o andar ― até a memória. No teatro se transfigura, realiza tudo que não conseguiu ser e recalcou; no teatro recebe a admiração da turba, e o palco que a consagra fica sendo ao mesmo tempo um andor e um trono.

Escrever é um ofício sórdido. É uma espécie de autofagia e eu talvez dissesse coisa pior, se ficasse bem a uma senhora escrever palavras feias. Digamos mais brandamente que escrever é girar em torno de si próprio, do próprio umbigo, da própria alminha, do próprio mundinho interior. O músico, o artista, o bailarino, apenas interpretam, traduzem, transmitem aos outros o sentimento de um terceiro; o escritor, é o seu próprio coração que ele atira aos cachorros, na rua. Ponho minha alma, meus sonhos, meus afetos numa folha de papel que será vendida a quinhentos réis ― e isso porque subiu o preço dos jornais. Já vendi muito retalho da minha alma apenas por um tostão.

Escrever nada tem de belo, de sublime ou patético. Como disse antes, é apenas sórdido. Um esforço penoso, tateante, um andar de caranguejo aos recuos e aos tombos, aos impulsos que se detêm inacabados, e aquela insatisfação com gosto de cinza, aquele desgosto de incapacidade e de impotência, e no fim aquela vergonha do próprio impudor que nos desnuda em público.

E não creiam que há prazer na criação. Só há fadiga, decepção e fracasso.

Como profissão, é miserável. Hoje rende alguma coisa, a alguns poucos indivíduos, mas qualquer emprego honesto dá muito mais. Estes cruzeiros menos curtos que nos pagam agora não querem dizer que o trabalho intelectual se valorizou: foi a inflação que desvalorizou cruzeiro. Vive o pobre escriba num mundo fictício, escravizado a essa abstração de reações imprevisíveis que é o leitor, com o qual jamais tem o menor contato direto a não ser por cartas. E as cartas de desconhecidos ficam sendo, em verdade, o símbolo da sua missão e a sua recompensa.

Até rio, quando falam em espiritualismo, em idealismo, para os que escrevem. Sabem qual é o único, o autêntico termômetro da importância ou da popularidade de um escritor? O balcão. O número de exemplares que edita e vende, ou a quantia que está disposto a lhe pagar o diretor do jornal onde escreve. Esse é que é o nosso idealismo.

Não, meninas, não escrevam. Vão ser funcionárias, médicas, atrizes, cantoras de rádio. Terão assim muito mais contato com a glória, com o mundo, com a vida real. Passada a vida, terão vivido; não lamentarão o temps perdu num mundo imaginário, onde o sangue é tinta, a carne é papel. Sim, um mundo de papel.

rachel-de-queiroz
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