Sim, nasceu um santo; e nasceu como os santos nascem, velhinho, alquebrado, aspirando a outra vida, tão perto da morte que já recebeu a extrema unção. E idoso, humilde, de origem obscura, sem nome de pai — assim mesmo fazendo milagre à vontade, curando não sei quantas qualidades de doença, só com um gesto de bênção das suas mãos.

Longe de mim pôr em dúvida os milagres do Padre Antônio. Embora tenha visto alguns casos que voltaram de Minas sem cura, como sucedeu a um homem daqui da Ilha, que ficara surdo por causa de uma queda, e voltou tão surdo quanto antes; mas há de ter sido por falta de sorte ou falta de fé. Outros muitos chegam curados, como aquele da úlcera de estômago, e a moça gaga, e a outra que escutava fala de rádio, mas não escutava fala de gente, e a menina de nove anos, paralítica desde os nove meses de idade, por nome Maria Helena.

Não, longe de mim. Pelo contrário, acho até uma ideia excelente que teve Nossa Senhora das Graças de iniciar uma era de milagres neste ano tão triste de 1947. Do jeito em que o mundo anda, só mesmo milagre, e muito. Com a vida difícil, as oportunidades tão poucas, os corações duros, as ambições sem medida, as doenças ruins comendo de esmola, as crianças morrendo como pintos; pobre que dantes passava mal hoje em dia passa pior, e quem passava pior a estas horas já deve ter morrido à míngua.

E afinal, para Nossa Senhora há de ser muito fácil obter esses favores do seu Divino Filho; curar umas chagas, matar uns micróbios, trazer luz a uma alma fechada de homem rico. Basta um milagrinho à toa, que quase não lhe dá trabalho, que nem chega a ser sacrifício — e vede a revolução que opera na terra! Olhai, Senhora, como vão cheios, para Urucânia, os caminhões, os ônibus, os trens, os aviões. Olhai as estradas, formigando de romeiros que viajam a cavalo, e os que viajam a pé, porque não dispõem sequer de um jumento que os transporte. Nem que houvessem descoberto ouro vivo nesse lugarejo, ou brilhantes e esmeraldas, acorreria tanta gente. E não ficastes admirada, Nossa Senhora, vendo os segredos de compaixão e desgraça que até agora viviam ocultos na intimidade das casas e que a esperança do milagre desvendou? Parece que cada família escondia uma tragédia, miséria de corpo ou miséria de alma, até agora sem solução. Cada uma tem o seu louco, o seu aleijado, o seu cego, o seu doente incurável — talvez não tão incurável, já que se apresenta esta promessa.

Muito bem começado, Senhora. Agora é ir avante. Uma vez no caminho dos milagres, não se pode mais parar. Porque socorrer apenas uns e não socorrer outros? Porque só haverão caridade e cura para os surdos, os paralíticos, os mudos e os doidos? Já pensastes nos tuberculosos da cidade do Rio de Janeiro, minha Nossa Senhora? Nos milhares que adoecem todos os dias, as meninas que morrem antes de desabrochar, as mães de família que deixam atrás de si a criançada já invadida do mal, os homens de trabalho que definham, amarelecem e se acabam? Tendes que tomar uma providência, Senhora. Se o governo dos ricos não a tomam, quem a tomará senão vós? Eles não fazem hospitais, não abrem ambulatórios, não distribuem remédios. Levantam o preço da comida, dão sumiço à carne, ao leite, aos ovos. Como quereis que este povo tome vitamina C para não ficar tuberculoso, se uma dúzia de laranjas de caminhão, e da pera, a pior, está custando de três cruzeiros para cima?

E fora a tuberculose, ainda há muitas doenças e desgraças, Senhora; as criancinhas, por exemplo, já lestes uma estatística, contando quantas criancinhas perdemos no primeiro ano de vida? Ou as que morrem nonatas, vítimas do mal hereditário? Ficaríeis assombrada se vísseis esses algarismos, Senhora, pensaríeis que outro massacre de Inocentes está se consumando, e numa escala em cujas proporções jamais sonharia o velho Herodes. Piedade e milagres para elas também, Senhora! E piedade para os garotos que sofrem acidentes de automóvel e ficam saltando numa perna só, mais dolorosos e lamentáveis do que as outras pequenas vítimas da paralisia e que já curastes.

Piedade para os que morrem de tifo, de malária e de miséria. E para os que vivem como se morressem, amontoados num cubículo de casa de cômodos, às vezes oito ou dez num só quarto. Se continuarem a morrer tantas crianças e tantos homens, afinal, com que os governos e os generais hão de fazer guerras? Piedade também para os governos e os generais, Senhora.

Piedade para todos, milagres para todos. Não só os recuperados de Urucânia mereciam milagres. Há muitos outros que esperam e que sofrem, Senhora.

rachel-de-queiroz
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