Nasceu gordo, chorão, pesando mais de três quilos. Traz consigo todos os sinais do triunfador futuro, e o pai já pensou em chamá-lo Cristóvão, pois parece que tão grande e tão forte há de repetir as infâncias do santo gigante e mais tarde, na vida adulta, o nome talvez lhe sirva como um estímulo no caminho das virtudes e do paraíso.
Encontrou preparado, a esperá-lo, tudo que o mundo tem de bom: e se não teve riqueza, teve abastança, que é muito melhor. E assim com o pão garantido, tem certo também o estudo que por alguns é chamado o pão do espírito; tem casa e jardim, tem o carinho paterno, e irmãos e irmãs, e nasceu num dia de sol, em terra chamada livre: não é judeu, nem é negro, nem amarelo — nada tem portanto que se possa considerar como “estigma” racial, nesta civilização de irrisória igualdade... Quer dizer que poderá se hospedar em qualquer hotel de Londres, poderá cantar nos palcos da Cidade do Cabo, sentar-se à mesa com qualquer cidadão do Império Britânico; nos Estados Unidos não será obrigado a usar condução reservada às pessoas de cor nem morar nas ruas privativas das ditas. No Brasil poderá até mesmo dançar no Baile dos Artistas. Sofrerá apenas o ligeiro “handicap” do “latino” entre as civilizações nórdicas. Mas dizem que isso até dá sorte entre as mulheres de lá. E já que falamos em mulheres, — a perfeição robusta das formas do recém-nascido deixa prever muito bem o belo varão que resultará da criança, o que lhe facilitará tudo, em matéria de amores.
Se se livrar mais tarde de ideias políticas e for homem que pensar com a maioria e com o seu tempo, teremos nele o cidadão ideal, praticamente invulnerável que sem temor nem pejo poderá aspirar a todos os bens da terra.
Eis pois um bem fadado, um afilhado de todas as madrinhas da sorte. E, contudo, já pensastes, irmãos e irmãs, vendo aquele inocente no seu berço, olhando-lhe a perfeição em miniatura do corpo, na qual pai e mãe se miram orgulhosos, sentindo-lhe no grito forte o poder dos apetites, — já pensastes no que irá sofrer durante os seus anos de vida o coitadinho que todos consideram uma preciosa promessa de homem? Tudo que nele se vê é perfeito — sim, perfeito, mas transitório e perecível. Tudo sujeito à lei da enfermidade, da deterioração e da dor; o belo coração, quem sabe a miocardite que acabará com ele, os pulmões rijos, que colônias de micróbios os aguardam para assaltar, os neoplasmas já em promessa no fígado, os venenos hereditários do sangue, e quanta promessa de horrores se emboscando no saco de vísceras do abdome?
Nasceu hoje — e no próprio dia do nascimento começa o inexorável processo de usura. Cada pancada do coração é um passo no desgaste, cada bocado que engole é um pouco de veneno que absorve. Se o ato de nascer foi o primeiro passo para o ato final de morrer, resta perguntar se na verdade o intervalo de vida situada entre o nascimento e a morte valerá os esforços e as dores dos dois extremos. Viverá 50, 60 anos, ou talvez morra jovem, em redor dos 30. E mesmo que nunca lhe suceda uma desgraça, mesmo que receba tudo que lhe auguramos, ainda assim valerá a pena? O dinheiro, por exemplo, o poder, o prestígio, a glória, há de tê-los, mas será bastante? O dinheiro, a sensação da riqueza, o terror de perdê-la, as durezas e as astúcias necessárias para conservá-la. E o poder, e a glória, exigindo lutas ainda maiores para os conquistar, cobrando mais que a riqueza, sabe Deus que angústias e crimes para os continuar possuindo. E o amor, que é, sozinho, muito mais sofrimento do que alegria, mesmo quando se trata de um amor feliz e correspondido — será pagamento bastante?
E fora tudo que padece o inquieto espírito, lá está sempre o corpo agarrado à alma, sempre incompleto e dolorido, sempre acusando o seu parentesco imediato com a lama de onde veio, doente, infeccionando, enrugando, supurando, exigindo uma vigilância feroz para não cair na degradação total; dia e noite, na vigília ou no sono, as unhas que crescem, os dentes que, se estragam, a digestão que se processa mal, a barba que é preciso raspar, a pele que é preciso esfregar, perfumar, cobrir, aquecer, pincelar de iodo, curar com pomadas, remendar com esparadrapo — e tudo isso só para manter a aparência fugitiva, a ilusão da beleza e do asseio, — sem atrasar de um passo a decomposição inadiável, que a morte apenas conclui. Isso a vida. Para isso nasceu o belo menino, por isso abrem champanha e festejam os amigos. E depois que ele houver aprendido a andar e a falar, e houver penado durante anos nas escolas a fim de aprender o pouco que se ensina, e depois trabalhar diariamente num emprego para ganhar alimento e casa, e tolerado uma mulher junto de si, que embora o ame e seja amada, o irá encher de tormentos, de filhos, de obrigações; quando ele cuidar que já fez a sua parte e olhar em redor procurando um vago prêmio para tanto esforço, então já será hora de aparecer a moléstia decisiva que se vinha aperfeiçoando num dos seus órgãos vitais. Será entregue aos médicos, e há de padecer todas as torturas, — será furado de agulhas, verá o seu ventre aberto e costurado, há de sentir se empeçonhado de drogas, até à hora do último suspiro. E então todos o hão de chorar, porque acabou-se uma vida feliz, porque o escravo se libertou das cadeias e voltou à terra, onde, por gosto seu, e se lhe fosse dado o entendimento e o governo dessas coisas, jamais teria saído.