Não, amigos, não traduzam; não me refiro ao Natal; quero mesmo dizer Noel, Noel nome próprio, Noel pessoa. Quando falo em Natal, digo Natal mesmo, que não sou criatura de francesismos. Falo de Noel Rosa, o chorado, o perdido Noel.

Noel não tinha queixo, não tinha dinheiro, não tinha saúde. Em outras palavras, era feio, era pobre e era tísico. Matéria prima especial para poeta, em verdade. Que os há também sãos e prósperos, e belos, mas representam uma contrafação. A figura de poeta que concebemos e cultuamos é aquele que anda mendigando uma média, e põe pela boca os pulmões junto com a alma.

Direis que Noel Rosa não era poeta, era sambista. Ora meus senhores. Todo legítimo sambista é poeta, enquanto nem todo poeta é sambista, isso sim. Quem não souber fique sabendo. E o autêntico poeta que não é sambista, sua lira e sua musa trocaria por um samba, um bom samba — trocaria volumes premiados pelo Amélia por exemplo. Ponde em leilão a autoria do misterioso Promessa e vereis Manu-o-Bardo-Imortal, Dantas-de-Morais-Cachorra, Augusto-Frederico-o-Rico, Pedro-Defunto-Bissexto, e até a Fidalga-Cecília todos lançando, todos querendo arrematar.

Tão ilustres embora, pisando em louros qual se fora grama, não passam duns sambistas recalcados. Ai, e nós também, nós também.

*

Estava eu ontem no meu canto sossegada quando o rádio tocou a homenagem a Noel Rosa.

Tocou Até amanhã. Meu Deus, três palavras vou dizer por despedida, mas não me parta o coração Noel, que eu já não tenho 18 anos. Só coração que ainda está empenando pode falar em despedida à toa. Passado certo tempo a gente deixa de gostar de se despedir, não quer largar nada, nada. Nem você queria, Noel. Não vê que suas palavras de despedida não incluem o adeus — é só até amanhã, até já, até logo... Chantagem sua afinal de contas, Noel.

Tocaram o Último desejo — nosso amor que eu não esqueço e que teve o seu começo numa noite de São João.

Se lembram, amigos, de Araci fanhosa, esganiçando no disco arranhado, e a gente chorando dentro do chope: “Perto de você me calo, tudo penso nada falo, tenho medo de chorar”...

E ainda é nesse samba que tem aquele pé dizendo: “O meu lar é o botequim”. Noel confessava isso batendo no peito, se culpando. Mas depois dele ficou clássico. E o homem que eu amo, que tu amas, que nós amamos, todos têm seu lar no botequim. Que lar não é onde se dorme nem se come, mas onde se ama e se sonha. No botequim nos conquistam, no botequim — Hélas — nos abandonam, no botequim choram a dor do amor traído, no botequim nos recuperam muitas vezes, com ajuda da vitrola e da saudade. Que o Rio é a cidade do amor no botequim. Botequim de cassino, botequim de toldo à beira-mar em Copacabana, botequim de esquina, botequim suburbano — mas sempre o cenário indispensável: a mesa, o garçom, a consumação no meio, seja sorvete ou cerveja, uísque ou madeira erre. Ou martíni com azeitoninhas que ainda há delas que acreditam nisso.

Depois do Último desejo tocaram umas curiosidades, sambas mal conhecidos de Noel que só alguns poucos devotos — e eu, e eu! — conhecemos.

Em seguida deram a introdução de Filosofia; mas os metais tocavam forte, o cantor era novo e acreditava em breque à Jorge Veiga, a orquestra parece que tinha pressa de acabar, corria na frente, com o cantor agoniado atrás.

Era como se irradiassem outra coisa, outra música. Onde estava Noel, humilde e desdenhoso Noel de Filosofia? Não dava ideia dele, parecia antes coisa daquela gente que só conhece a hipocrisia e não se importa se ele vai morrer de sede ou se vai morrer de fome...

E eu e o outro nos pusemos a comentar. Será mesmo Noel? Que diferença, gente, até dói! Carecia ter um jeito de se preservar a tradição de Noel Rosa, com discos velhos, com velhos cantores que nunca tenham ouvido swing ou fox-canção. E principalmente que nunca tenham ouvido bolero. Sim, é isso: estão dando a Noel um jeito de bolero.

Perto de nós um mocinho escutava e achava chato; nem compreendia tanta fama, tanta literatura. E a gente, por contágio, parece que também ia ficando fria, ia estranhando, desanimando.

Céus, que seria aquilo? Que mudança? Tínhamos vontade de virar soneto, fazer um trocadilho e perguntar: “Mudaria o Noel ou mudei eu”?

Foi então que, dulcíssimo, noelíssimo, um coro irrompeu em surdina nas Pastorinhas.

“A estrela d’alva, no céu desponta”...

Não, Noel, não mudamos. Nem você, nem nós. Veja como cantamos comovidos, seguindo as pastorinhas. Mudaram os tempos, Noel. Mudaram os ritmos, os músicos. Nós não.

rachel-de-queiroz
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