Outro dia o cronista de A Cigarra falou com muito espírito nas personalidades ilustres que ora habitam a Cidade Jardim Laranjeiras; e pelo que parece aquilo está ficando mesmo uma “Nova Arcádia Carioca”. Pois lá no Jardim Laranjeiras, no canto da rua Badajoz com Jussara, subindo para o morro e a pedreira, morou também o pequeno Ed, que seria ilustre algum dia se a mão do destino não dispusesse de outro modo; tão novo, ainda, já tinha ele pinta do grande homem.
Era pequeno, delgado e alvo, de cabelo louro escorrido e olhar faiscante, lembrando um pouco Jackie Coogan, dos tempos do The Kid.
Teria talvez dois anos quando o conheci. Sim, dois anos: lembro-me de que erguia no ar os dois dedinhos e o gesto tanto servia para indicar a idade como para fazer o “v” da vitória. Porque Ed, filho de francês e degaullista, era um patriota ardentíssimo. Uma das últimas vezes em que o vi, usava no casaco o tope tricolor e trazia na mão a bandeira da cruz de Lorena. Chegava de uma solenidade onde se disseram versos e discursos, onde se vivara De Gaulle e se cantara a Marselhesa; estávamos então naquele período sinistro de França ocupada e França semi-ocupada e os franceses que não podiam combater na resistência ou na África tinham que se contentar com choro, e cânticos, e festivais de beneficência. Tempos duros; engraçado, como depressa o esquecem.
Ed, vindo da festa, não a considerava concluída, pois não era desses homens céticos que fecham a porta de um entusiasmo como quem fecha atrás de si a porta de um elevador, chegado ao térreo. Entrou em casa cantando ainda o “Aux armes citoyens!”, me agitou debaixo do nariz a sua bandeira e, como sempre se mostrava um primor de galanteria, ofereceu-me o seu orgulho da ocasião, o tope tricolor que ostentava à lapela.
Pois eu era uma das inúmeras mulheres que houve na sua vida; as outras tinham títulos mais altos — mãe, avó, tias, madrinhas; era eu porém a sua vizinha predileta. Conversávamos por cima do muro, tínhamos longas palestras no banco do jardim e, sempre que podia escapar à vigilância doméstica, ele me batia devagarinho à porta e chamava, à moda da sua terra: “Madame? Madame?”. Sim, porque por mais que nos quiséssemos, sempre havia entre nós aquela cerimônia; nunca me chamou pelo nome. Mas o “madame”, na sua boca, era tão terno e tão sorridente que equivalia a muita palavra de carinho.
Outras vezes me vinha chamar para ver a flor de nenúfar que se abria, muito roxa, no tanque de seu jardim, ou uma rã entocada num côncavo de pedra; o tanque media apenas meio metro de fundo por um metro de largo, mas para Ed era vasto, misterioso e belo como o oceano. Tinha pedrinhas brancas no fundo, folhas verdes miúdas à flor da água, caramujos e uma tartaruguinha ornamental na areia da margem. Nele Ed fazia navegar seu barco e a bordo daquele barco navegava o seu coração marinheiro, em busca de aventuras e emoções. A gente perguntava: “Para onde vai esse barco, Ed”? E ele respondia, muito grave: “Vai para a guerra, madame”.
Ai, e a fidalguia de Ed quando vinha trazer um presente! Dessa vez não irrompia pela entrada de serviço, às cambalhotas com a nossa cachorrinha Dolores, que ele adorava e maltratava como um apache; nem me puxava as saias, informando baixinho que “Ed queria biscoito”. Tocava gravemente a campainha da porta da frente, entrava, dava três passos, dizia “Bonjour, madame”, bem ensinado como um pajem, e só então me depunha nas mãos a dádiva. Ah, Ed, em qualquer lugar que esteja você, fique sabendo que ainda guardo o seu retrato tirado no Carnaval e a caixa de pó vazia e tudo o mais que me deu; e nunca os pude ver sem sentir choro nos olhos, garoto!
Certo fatal meio-dia, Ed desapareceu de casa, enquanto os pais almoçavam. A princípio, ao lhe darem pela ausência, não se inquietaram muito, cuidando em que ele, como de costume, fugira para a casa de “madame”. Mas passados dez minutos, 15 minutos e nem sinal de Ed, foi a ama indagar. Não, Ed não estava lá em casa. Nem se escondera no seu recanto predileto do jardim; nem se metera entre as árvores do morro, ribanceira abaixo ou ribanceira acima, na rua Badajoz. Com o coração ansioso, fomos ver se não rolara pela escadaria de cimento que desce da rua Jussara até à praça, no vale. Pensamos nos caminhões carregados de pedra que se despencavam da ladeira como uns furacões. O pai já tremia, a mãe já chorava. Ed, Ed! Passamos duas ou três vezes ao lado do tanque, muito plácido, com a superfície coberta de plantas d’água. Afinal, quando de novo o procurávamos entre as árvores do morro, ouvimos os gritos da mãe que ficara atrás. Ela adivinhara, afastara as folhas de sobre a água do tanque. Lá no fundo, deitado entre as pedras claras, meio-embaraçado nos longos talos do nenúfar, estava o corpinho de Ed. Decerto o reflexo de algum raio de luz, uma flor ou um inseto brilhante o atraíra, fazendo-o debruçar-se e cair. Mas como perdera os sentidos e se afogara numa água tão rasa? Jamais ninguém o soube.
Talvez no tanque, tão pequeno, embora houvesse uma iara, uma ondina ou uma sereia que, seduzida pelo brilho do seu cabelo louro ao sol, lhe abrisse os braços, chamando-o e não o soltasse mais. A ele bastava sorrir para fascinar as mulheres.