Parecia uma borboleta espantada num cartão; os braços em cruz, as pernas espalmadas, pendurado de cabeça para baixo, na ribanceira a pique, sustido nos ombros por dois tocos rasos de arbusto, entre os quais o pescoço se metera.

De longe já se entendia que estava morto. Há na morte um sinal, uma presença, — será uma aura? — que não permite enganos.

Veio um carro. De longe avistou — o homem estrategicamente colocado, como um cartaz — diminuiu a marcha, devagarinho, entre curioso e indeciso. Meu Deus, que coisa. Naquela espalda perdida de serra, o defunto estava só. Polícia, se chamada, não chegara ainda. E por perto não se via uma casa, um roçado, indicação nenhuma de gente próxima. Só no mato ralo, no morro roído de erosão, aquele céu muito claro, o sol forte, voo de urubu, bem alto.

O carro parou, afinal. Dele saiu um moço de camisa xadrez; andou rapidamente, até a ribanceira, estacou, ficou um momento a olhar, depois acocorou-se; tocou com a mão esquerda a perna direita do defunto, que se adiantava para a borda da estrada. Mas recolheu a mão com medo, como se a coisa queimasse. Pôs-se de pé, lançou a vista em redor, e foi falar com os companheiros do carro. Então desceram todos, foram todos até à ribanceira, todos se acocoraram, tocaram. Um deles quis puxar o morto, tirá-lo daquela posição triste, mas logo o outro lhe segurou o braço: era entendido em romances policiais, sabia que num defunto não se mexe, mormente quando sofreu morte violenta. E isso trouxe novo motivo para o debate porque não havia indício nenhum de morte violenta, embora visto de baixo para cima, estava sereno. Sangue não aparecia, nem contusão, nem língua de fora que traísse estrangulamento. Nem espuma de veneno, na boca. A roupa estava inteira, sem traço de luta nem maus tratos; era um blusão verde, calça de brim, sapatos abertos. Parecia que a criatura escolhera deliberadamente aquele vão entre os dois tocos para enfiar a cabeça, estendera-se, abrira braços e pernas e morrera.

— Quem sabe não se deitou assim para dormir? disse um de brincadeira. E o moço de blusa xadrez, que era do Rio Grande do Norte, lembrou-se de que, quando menino, em Mossoró, conhecera um palhaço de circo que dizia só saber dormir pendurado de braços e pernas na barra fixa. “Vocês aqui não dormem de rede? Pois eu tenho a minha rede invisível”...

Aí chegou um caminhão e parou, num grito brusco de freio. Desceram os três homens que vinham à boleia. Já os passageiros de automóvel, com autoridade dos seus quatro minutos de antecedência, explicaram muita coisa aos recém-chegados. Nova tentativa, desta vez da parte do motorista do caminhão, para levantar o morto até a estrada; e novamente o entendido em polícia impediu o socorro.

— Tem que deixar tudo como está. E nem é bom a gente pisar muito por perto, para não apagar os indícios.

Ouvindo falar de indício, um dos passageiros do carro abaixou-se e apanhou o palito de fósforo que inadvertidamente jogara por terra. Não fosse aquilo servir para o incriminar. Com polícia ninguém sabe.

Outro perguntou que é que se fazia então. E o dono da viagem do carro de passeio respondeu com autoridade que, claro, o papel era chegar à cidade mais próxima e notificar o Delegado. Virou-se para o motorista do caminhão:

— O senhor podia bem fazer isso. Nós temos que chegar ao Rio hoje à tarde, para negócio urgente.

Mas o motorista também tinha negócio urgente, aquela carga toda para entregar. Além disso a cidade mais próxima ficava para trás, não para diante, e na estrada estreita, à beira da montanha, não havia espaço para o caminhão fazer manobra.

Não chegou a haver discussão porque, imediatamente, se escutou uma buzina, na curva apareceu uma camioneta carregada de gente: logo se entendeu que era a polícia. Polícia é como defunto, também traz consigo uma marca, um cheiro, uma coisa que não permite engano.

E os passageiros dos dois veículos, que já estavam a ponto de se azedar, se reuniram todos num grupo fechado, como se defendendo dos dois secretas que apeavam da camioneta do cabo fardado, do Delegado de chapéu cinza puxado para os olhos. Sentiam-se nervosos. Com polícia a gente não adivinha, não é mesmo?

Calmo, só mesmo o defunto, com os seus olhos muito abertos, vidrados, recebendo em cheio a luz do sol. O moço da blusa xadrez ainda quis verificar uma ideia que lhe ocorreu: se olho de gente morta reflete luz, como o olho vivo. Mas o vulto de um secreta se meteu na sua frente, e ele desistiu da experiência a fim de não mostrar curiosidade indevida.

rachel-de-queiroz
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