Nasce o homem nu e só depois é que se veste. Perde a nudez com a inocência; junto com a inocência perde a beleza, e como se sente feio e impuro, começa então a cobrir-se e a envergonhar-se. Isto não são invenções minhas, está na Bíblia, que é o Livro por excelência.

Se nasce nu, nu deveria morrer. Perdendo com a morte a consciência de tudo, inclusive a consciência do bem e do mal, de nada mais se pode temer nem envergonhar, como aliás não se teme nem se envergonha, atirado que foi ao supremo abandono. Os outros homens é que por ele se envergonham e o cobrem, tentando manter no cadáver a identidade do vivo, como se adiantasse para alguma coisa aquele precário e postiço adiamento.

No fundo disso está o velho horror à morte que todos os homens sentem; e tomados desse horror, tentam fantasiar a morte, encobri-la, procurando lhe dar cores que ela não tem, fazê-la uma espécie de prolongamento da vida, ou aparência de vida, recorrendo para isso a quaisquer artifícios. Enquanto não se desmancha, o defunto ainda é um homem, sujeito às ridículas etiquetas dos homens, e até que a terra o receba e possua, por essas etiquetas é ele governado.

Nessa luta para sustentar uma mentira, esquecem os homens que um corpo morto é coisa repugnante e terrível, que dedos humanos não devem tocar um cadáver — quanto mais para as frívolas, as inúteis atividades da toilette fúnebre. Já vistes vestir um cadáver, amigos? Eu já vi aprontarem uma velha para o enterro. Tiram-lhe a camisola, ainda molhada no suor da agonia, e lhe lavaram o corpo flácido, que se dobrava grotescamente nas mãos das fúnebres camareiras. Sentaram-na despida na cama, enxugaram-na, pentearam-lhe o cabelo comprido, ralo e branco, e lhe fizeram um coque, e até lhe alisaram faceiramente os bandós, segundo ela os usava quando ainda era gente. Depois lhe passaram uma camisa limpa, aberta de rendas no peito ― sim, rendas ― e sobre a camisa enfiaram a mortalha, que era um hábito de freira, com um grosso cordão atado à cintura. Calçaram-lhe meias, esticaram-nas com cuidado nas pernas, e até lhe puseram ligas ― porque, não o sei. E lhe enfiaram uns sapatos de cetim preto, os sapatos de gala da velha, que fechavam com um pequeno botão de cristal, ao lado. Na sola ainda se viam restos de espermacete, da cera com que havia sido espalhada no soalho da sala de danças, na festa de aniversário de um dos netos da morta, meses atrás. Depois lhe arranjaram os olhos, compuseram o melhor possível o mal fechado das pálpebras, cingiram o rosto com o véu de freira, substituindo o lenço que segurava a maxila relaxada. E já então rígidas, com os pés amarrados por um laço de fita preta, foi ela mudada para o caixão; lá lhe reclinaram a cabeça num travesseirinho de seda, entre os dedos cruzados ao peito enfiaram o rosário ― e assim a entregaram ao culto da família, à temerosa curiosidade dos estranhos ― severa, hierática, com um vago sorriso postiço descobrindo de leve a dentadura postiça. E que mais não seria postiço? Tão grotesco e inútil quanto os dentes de porcelana era tudo mais que levava a morta. Para que precisava de roupas quentes de lã, de meias, o corpo que horas mais tarde já nem corpo mais seria, e que parara de sentir frio ou calor? Para que sapatos em pés que deixaram de andar? E travesseiro sob a cabeça que jamais teria cansaço e pois não pediria repouso? Para que fingir vida e necessidades de vida, naquilo que já deixou de ser gente para virar uma simples coisa inanimada?

Claro que só se faz esse atentado contra os mortos como um desesperado e último recurso de combate à morte. Para disfarçar o nosso medo e manter as marcas e os sinais da vida naquele sinistro despojo. Nem é por outra razão que gritamos tão alto o nosso respeito aos que morreram; para estar em oposição à morte, teimando em venerar aquilo que ela não respeitou. Por isso ainda usamos de metáforas, dizemos que os defuntos dormem, chamamos à morte o último sono. No entanto nada há mais diferente: sono é vida, é presença, é recuperação, é movimento para diante; e a morte é justamente o contrário, decomposição, dissolução, ausência, movimento para trás.

Pela mesma causa se embalsamam mortos; e ainda por isso se inventaram os sarcófagos herméticos que retardam a decomposição; e se guardam como joias, dentro de chumbo, de madeiras balsâmicas, de veludo, de prata, aqueles transitórios detritos da vida. E são postos depois em mausoléus de mármore, ou de concreto impermeável, a fim de que o finado se decomponha em seco, tal qual um rato morto numa gaveta abandonada. E cobrem aquilo com flores; verdade que isso das flores ainda é o mais justo, porque flores também são despojos, também estão mortas e se vão destruir e virar nó, seguindo a caminho de tudo que viveu.

Quanto a mim, já o roguei a quem me ama, e torno a pedir solenemente agora: não me manejem o mísero cadáver, nem lavem irrisoriamente aquilo que já é sujo e podridão, nem o enfeitem, nem o vistam. Por recato, apenas, por amor aos olhos dos outros, consinto que o enrolem num lençol da cama onde se finou, ou na rede ― e assim enrolado e sórdido, fezes da vida que sem caixão, sem carro, sem acompanhamento, sem túmulo de cimento que o isole da terra, à terra o entreguem. E a terra depressa dará conta da sua tarefa, logo o reduzirá à lama a que se destina e, ou o fará virar-se no seu próprio húmus, generoso, dando seiva às plantas, ou com ele há de garantir o alimento dos bichos obscuros da profundas, que também são viventes e também têm direito ao seu sustento natural.

rachel-de-queiroz
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