Jânio já está aí. E na hora primeira do seu governo a voz do Presidente se fez ouvir no país inteiro, falando uma linguagem nova.

Sim, creio que depois daquela histórica promessa de Churchill à sua gente — o sangue, o suor, as lágrimas — poucas vezes, ou nunca, um chefe de governo terá dito ao seu povo verdades tão duras quanto as que foram anunciadas ao Brasil, no seu discurso de posse, pelo presidente Jânio Quadros.

Mostrou o presidente, ao usar daquela terrível, mas esplêndida, franqueza, que, acima de tudo, respeita o povo que o elegeu. A verdade, a exposição da verdade, crua e sem enfeites, era o que ele nos devia — e foi o que nos deu. Tratou-nos a todos como a um povo adulto, que deve tomar consciência da sua situação difícil e enfrentá-la; não viu na nossa gente apenas aquela massa de manobra, imbecilizada pela miséria e pela propaganda, à qual só se podem dizer mentiras, ou as meias verdades chamadas convenientes. O presidente fala ao povo não como o ilusionista à plateia —, fala ao povo de homem para homem, de brasileiro para brasileiro, e lhe anuncia a dura realidade, com o coração nas mãos. Não acena com grandezas, não nos assopra o ufanismo fácil, nem usa esse irritante otimismo dos que procuram acreditar num imaginário bem-estar geral, como justificativa do seu notório bem-estar particular. Não, o novo presidente só nos promete austeridade e trabalho.

Confessando de público a catastrófica situação econômica e financeira do país, o presidente não faz, entretanto, alarmismo nem demagogia; apenas presta contas do que encontra, para que o povo entenda e o ajude no seu esforço de recuperação. E rebate logo as infalíveis cavilações que alegam a má repercussão no estrangeiro de tais confissões articuladas num discurso de projeção internacional, com esta afirmação ao mesmo tempo corajosa e amarga: “Para os círculos bancários e econômicos, indígenas e estrangeiros, o quadro deplorável das nossas finanças não é novo, antes sobejamente conhecido. Ignora-o, apenas, a opinião nacional, mantida entre os vapores inebriantes de uma euforia quase leviana”.

Depois de nos contar essas verdades penosas, mas necessárias, o presidente faz um apelo à consciência de cada um: pede que nos compenetremos da divisão da responsabilidade que nos cabe a todos, em relação à vida nacional; sendo todos brasileiros, precisamo-nos convencer de que também somos todos solidariamente responsáveis pelo destino do Brasil. “O Estado somos nós”, brada o presidente. Sim, o Estado somos nós, você e eu, pobres e ricos, políticos e trabalhadores. O Estado não é um milionário condescendente e otário, a quem todos podem explorar sem remorsos, de quem todos podemos, egoisticamente, arrancar uma propina. O dinheiro do governo só tem uma fonte: o imposto, só vem de um lugar: o bolso do povo. Nos cofres do Tesouro Público só se guarda aquele pequeno dinheiro, colhido pelo fisco, tostão a tostão, no selo da carta, na estampilha do documento, na taxa que o coletor nos cobra, sob nomes tão diversos. Quando alguém está a pleitear alguma vantagem do governo, na verdade está tomando dinheiro que já tem dono, que foi cobrado para abrir estradas, para sustentar escolas, para manter hospitais. Está tomando para si, roubando o que se destina a ser de todos.

Há, porém, nas promessas de austeridade e nos pedidos de sacrifício feitos no discurso presidencial, uma nota nova, em que talvez não se tenha reparado muito: o presidente pede sacrifícios, mas sabe de quem os exigir. Paguem primeiro os que podem. Paguem os que devem. Cortem-se as asas dos que voam alto. Não será de baixo que devem chegar os exemplos de renúncia, os cortes do supérfluo; venham eles de cima, dos bolsos fartos, “dos especuladores empenhados no auto enriquecimento, e na autoconcessão de proveitos e regalias”. “Não pedirei ao povo que aperte o cinto e sofra calado o enriquecimento abusivo e indecente dos gozadores inescrupulosos. Os proletários e os humildes devem zelar pelos seus interesses e por eles lutar dentro das regras do sistema democrático”. Nisso é que está a novidade. Estamos habituados a ouvir o governo pedir sacrifícios, mas só dos pequenos e pobres, do povo comum. Alegam que a vida intoleravelmente cara, a dieta de fome, os salários, cada vez mais insuficientes, são o preço da industrialização, do progresso, das hidrelétricas, do petróleo, de Brasília, da OPA, do céu, da lua, das estrelas, dos satélites artificiais. Mas isso se exige do povo, não dos grandolas. E enquanto o povo conta os caroços de feijão na panela, e viaja a pé porque não pode viajar de ônibus, e mora em favelas infectas, e anda nu, e cai de doente, e quase volta ao nomadismo do índio esfomeado, emigrando de um lado para outro — enquanto isso, os novos ricos nunca foram tão ricos nem tão novos, os grupos do dinheiro nunca auferiram lucros tão astronômicos, as negociatas nunca foram tão rendosas, os protegidos do governo nunca viajaram tanto, nunca aproveitaram tanto e — digamos a palavra que é dura, mas chegou a hora das palavras duras — nunca roubaram tanto.

São esses, especialmente, os que devem apertar o cinto, promete Jânio Quadros. A esses se exigirão os sacrifícios maiores. Deles serão tomados os lucros excessivos, a eles se pedirão contas de todos os abusos. Ao povo propriamente, o presidente não pede senão que tenha paciência e confiança. E mais nem poderia pedir, pois que o povo, coitadinho, fora isso, que é que tem para dar?

rachel-de-queiroz
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