O meninozinho tomou o ônibus na sua pequena cidade do estado do Rio onde nascera e se criara. A mãe o trazia para ver a cidade grande. Ele, embora não fosse freguês de tais passeios, mantinha-se sentado dignamente, a espiar discreto a paisagem que corria por trás da vidraça. A mãe é que traía a sua condição de noviço, com os seus excessos de solicitude, a apontar: Olha a igreja da Penha! Olha o Balneário de Ramos! Olha a ponte do Galeão, filhinho! E, ou porque não o interessassem urbanística e arquitetura, ou porque lhe desagradassem demonstrações em público, o garoto, em vez de embasbacar para os sítios apontados, olhava de viés a mãe, talvez lhe sugerindo que calasse a boca. Ele afinal não era cego. O que mais o interessou foi o cemitério do Caju, que ficou a acompanhar longamente com a vista, chegando mesmo a ajoelhar-se no banco. O gasômetro também lhe arrancou uma pergunta em voz baixa: ― se aquilo era uma caldeira. E tinha motor?

Saltaram na praça Mauá. Tomaram um táxi que os levou à casa da tia, na avenida Copacabana. Na longa viagem de automóvel, ao atravessarem a avenida Presidente Vargas ele indagou se era ali o Maracanã; desiludido, dedicou-se inteiramente ao estudo do relógio do táxi, que evidentemente o fascinava. Não quis saber de praça Paris, nem dos arranha-céus do Flamengo, nem sequer do bondinho do Pão de Açúcar. A mãe, de início, lhe explicara o mecanismo da bandeirada e a marcha dos quilômetros no mostrador, traduzidos em dinheiro. Por brincadeira lhe dissera que ele é que iria pagar a corrida. A cada cruzeiro que aumentava, o pequeno levava nervosamente a mão no bolso da calça, onde guardava bem dobradinha uma nota de duzentos cruzeiros, que a madrinha lhe dera à despedida para “desmanchar em brinquedos”. Ao entrarem no túnel ― o relógio ia alto ― tão entretido vinha ele com o problema econômico que só deu de si quando estava lá dentro; a princípio cuidou que passavam por baixo de uma casa ― talvez uma estação. O ruído do eco lá dentro era de fazer medo e a palavra “túnel” que a mãe gritou não lhe significava nada. Ao sair, ressabiado, olhou pela vidraça de trás — e pior ainda lhe pareceu aquele buraco cavado nas entranhas do morro.

Gostou do elevador, adorou. Infelizmente não consentiam que passeasse nele tanto quanto o seu coração pedia. Mas detestou o apartamento. Sentia-se enjaulado, topando com uma parede a cada dez passos, sem uma nesga de ar livre defronte do nariz. Talvez apreciasse melhor a vertigem daquele décimo andar de altitude se o deixassem debruçar-se ao parapeito das varandas. Mas só conseguiu ficar a olhar um momento, ajoelhado numa cadeira, enquanto a mãe o sustinha pelos suspensórios. Várias vezes tentou espiar escondido, mas sempre havia por perto um delator. Acabou apanhando.

Interpelado pela tia se não gostava de morar em edifício respondeu que talvez gostasse de morar “por fora”. É dado a essas frases lacônicas, quase herméticas. Por exemplo, atravessando o rush das seis horas, no Flamengo, ante a imensa quantidade de automóveis (veículos a que ele dedica comovedora paixão), indagou se tinha mil, ali. A tia afirmou que positivamente tinha mais de mil ― bem uns dez mil. Ele abanou a cabeça, descrente: não há nada que seja mais de mil. Até dinheiro, só tem até mil. Ele viu a nota e o pai lhe disse que era o maior de todos os dinheiros. A tia insistiu: Pois ali tinha, sim! Quem sabe até trinta mil! E ele, com a vista no rio de dorsos deslizantes:

― Pois se fosse só mil, chegava.

Ao mar, não ligou muito. Já vira mar livre em Cabo Frio. Embelezou-se foi pela boneca que uma garotinha de maiô amarelo levava consigo pela calçada, segurando-a por uma mão, enquanto a babá segurava a outra. A boneca trocava a passada como gente, e a cada passo movia também a cabeça cheia de cachos. Isso realmente pareceu ao pequeno uma invenção admirável. Não fosse homem, teria pedido por tudo no mundo que lhe dessem uma boneca assim. Chegou a pensar ― quem sabe não ficaria mal se pedisse não uma boneca, é claro, mas um boneco, de calças compridas, fardado... talvez não brigasse com a sua masculinidade.... Sugeriu a ideia à mãe, timidamente, com medo de troça. Ela não riu, mas cortou rente:

― Você está doido? Dinheiro para comprar uma boneca dessas dava até para comprar uma bicicleta.

Não é que ela pretendesse dar a bicicleta; falava só para efeito de comparação. Pois ele sabia muito bem ― helàs! — quão inacessível é uma bicicleta e, assim, haveria de entender.

*

Da volta não falo, porque da estação Mariano Procópio até plena serra ele dormiu, a cabeça no colo da mãe; e o pensamento, só ele e os anjos podem saber onde andava.

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