Falei que o desprezado jurara de matar o traidor. Seria verdade? Quem sabe as coisas que é capaz de inventar uma mulher feia improvisada em bonita pelo amor de dois homens, querendo que o seu amor renda os juros mais altos de paixão?

Um belo moço assustou. Gente bonita está habituada a receber da vida tudo a bem dizer de graça, sem luta nem inimizade, como seu direito natural, que os demais devem graciosamente reconhecer. As mulheres o queriam, os homens lhe abriam caminho. E não é só em coisas de amor: de pequenino, o menino bonito se habitua a encontrar facilidades, basta fazer um beiço de choro ou baixar um olho penoso, todo mundo se comove, pede um beijo, dá o que ele quer. Já o feio chora sem graça, a gente acha que é manha, mais fácil dar-lhe uns cascudos do que lhe fazer o gosto. Assim é o mundo, e se está errado, quem o fez foi outro, que não nos dá satisfações.

Pois o bonito assustou. Passou a olhar o outro de revés, ele que antes vivia tão confiado, como se achasse que a obrigação do coitado era lhe ceder a menina e ainda tirar o chapéu. Passou a ver mal em tudo. De manhã, ao montar a cavalo, examinava a cilha e os loros, os quatro cascos do animal. Ele que só usava um canivete quando ia assinar criação, comprou ostensivamente uma faca, afiou-a na beira do açude, e só a tirava do cós para dormir. E quando saía a campo com o companheiro, em vez de irem os dois, lado a lado, segundo o costume, marchava atrás, dez braças aquém do cavalo do outro.

O feio não falava nada. Fazia que não enxergava as novidades do colega. Como sempre andara armado, não careceu comprar faca para fazer par com a peixeira nova do outro. E sendo do seu natural taciturno, continuou calado e fechado consigo.

E o outro — nós mulheres estamos habitadas a pensar que todo homem valente é bonito, mas a recíproca nem sempre é verdade, e nem todo bonito é valente. Este nosso era medroso. Era medroso mas amava, o que o punha numa situação penosa. Não amasse, ia embora, o mundo é grande, os caminhos correm para lá e para cá. Só lhe restava, portanto, amar e ter medo. Ou defender-se. Mas como? O rival não fazia nada, ficava só naquela ameaça silenciosa; as juras de morte que fizera, se as fizera, de juras não tinham passado ainda. Meu Deus, e ele não era homem de briga, já não disse? Tinha certeza de que se provocasse aquele alma-fechada, morria.

Bem, as juras eram verdadeiras. O feio jurara de morte o bonito e não só de boca para fora, na presença da amada, mas nas noites de insônia, no escuro do quarto, sozinho no ódio do seu coração. Levava horas pensando em como o mataria — picado de faca, furado de tiro, moído de cacete. Só conseguia dormir quando já estava com o cadáver defronte dos olhos, bonito e branco, ah, bonito não, pois quando o matava em sonhos a primeira coisa que fazia era estragar aquela cara de calunga de loiça, pondo-a de tal modo feia que até os bichos da cova tivessem nojo dela. Mas como fazer? Não poderia começar briga, matá-lo, sem quê, nem mais. Hoje em dia a justiça piorou muito, não há patrão que proteja cabra que faz uma morte, nem a fuga é fácil, com tanto telégrafo, avião, automóvel. E de que servia matar, tendo depois que penar na prisão? Assim, quem acabaria pagando o mal feito havia de ser ele mesmo. O outro talvez fosse para o purgatório, morrendo sem confissão, mas era ele que ficava no inferno, na cadeia. Aí então teve a ideia de uma armadilha. Botar uma espingarda com um cordão no gatilho... quando ele fosse abrindo a porta. Não dava certo, todo mundo descobriria o autor da espera. Atacá-lo no mato e contar que fora uma onça... Qual, cadê onça que ataca vaqueiro em pleno dia? E a chifrada de um touro? Difícil, porque teria que apresentar o touro, na hora e no lugar... Lembrou-se então de um caso acontecido muitos anos atrás, quase no pátio da fazenda. O velho Miranda corria atrás de uma novilha, a bicha se meteu por sob um galho baixo de mulungu, o cavalo acompanhou a novilha, em cima do cavalo ia o vaqueiro: o pau o apanhou bem no meio da testa, lá nele, e quando o cavalo saiu da sombra do mulungu, o velho já era morto... Poderia preparar uma armadilha semelhante? Como induzir o rival?... Levou quatro dias de pesquisa disfarçada para descobrir um pau a jeito. Afinal achou um cumaru à beira de uma vereda onde o gado passava para ir beber na lagoa. O cumaru estirava horizontalmente um braço a dois metros do chão, cobrindo a vereda logo depois que ela dava uma curva. A qualquer hora passariam de novo os dois por ali. E como só um passava pela vereda estreita, bastava ele ficar atrás, apertar de repente o passo, meter o chicote no cavalo da frente; o outro, assustado com o disparo do cavalo, se descuidava do pau — e era um homem morto.

*

Mas não deu certo. Isto é, deu certo do começo ao fim — só faltou o fim do fim. Pois logo no dia seguinte se encaminharam pela vereda, perseguindo um novilhote. O bonito na frente, o feio atrás, como previsto. Quando chegaram à curva que virava em procura do cumaru, o de trás ergueu o relho, bateu uma tacada terrível na garupa do cavalo da frente, que já era espantado do seu natural, e o animal desembestou. Mas o instinto do vaqueiro salvou-o no último instante. Sentiu um aviso, ergueu os olhos, viu o pau, deitou-se em cima da sela e deixou o cumaru para trás. Logo adiante acabava a catinga e começava o aceiro da lagoa. O bonito sofreou afinal o cavalo. Podia ser medroso, mas não era burro e uma raiva tão grande tomou conta dele, que até lhe destruiu o medo no coração. Sem dizer palavra, tirou a corda do laço debaixo da capa da sela, e ficou a girar na mão o relho torcido, como se quisesse laçar o novilho que também parara, várias braças além e ficara a enfrentá-los à distância. O companheiro espantou-se: será que aquele idiota esperava laçar boi, a tal distância? Claro que não entendera como andara perto da morte.... Mas o laço, riscando o ar, cortou-lhe o pensamento: em vez de se dirigir à cabeça do novilho, vinha na sua direção, cobriu-o, apertou-se em redor dele, prendeu-lhe os braços ao corpo e se retesando num arranco atirou-o de cavalo abaixo. Num instante o outro já estava por cima dele, com um riso de fera na cara bonita.

— Pensou que me matava, seu cachorro... Açoitou o cavalo de propósito, crente que eu rebentava a cabeça no pau... Um de nós dois tinha de morrer, não era? Pois é assim mesmo... um de nós dois vai morrer...

Enquanto falava, arquejando do esforço e da raiva, ia inquirindo na corda o homem aturdido da queda, fazendo dele um novelo de relho. Daí saiu para o mato, demorou-se um instante perdido entre as árvores e voltou com o que queria — um galho de emburana da grossura de um braço de homem. Duas vezes malhou com o pau na testa do inimigo. Esperou um pouco para ver se o matara. E como lhe pareceu que o homem ainda tinha um resto de sopro, novamente bateu, sempre no mesmo lugar. 

Chegou à fazenda, com o companheiro morto à sela do seu próprio cavalo, ele à garupa, segurando-o com o braço direito, abraçado como um irmão; com a mão esquerda puxava o cavalo sem cavaleiro.

Ninguém duvidou do acidente. Foi gente ao local, examinaram o galho assassino, estirado sobre a vereda como um pau de forca. Fincaram uma cruz no lugar.

E o bonito e a feia acabaram casando, pois o amor dele era sincero. Foram felizes. Ela nunca entendeu o que houvera e remorso ele nunca teve, pois, disse ao padre em confissão, matou para não morrer.

E a moral da história? A moral pode ser o velho ditado: faz o feio para o bonito comer. Ou então compõe-se um ditado novo: entre o feio e o bonito, agarre-se ao bonito. Deus traz os bonitos debaixo da sua mão.

rachel-de-queiroz
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