Há muitas espécies de poesia neste mundo de poetas. E diz-se mesmo que tudo pode ser poesia. Mas na verdade a poesia que a gente realmente ama, a que nos vai correndo ao coração, é aquela poesia direta e simples e acima de tudo cantante, que flui como uma melodia do peito do poeta para o peito da gente; poesia que se lê ou se escuta batendo a cadência com a cabeça, embalado pela cantiga, ninado pelas palavras que nos falam de coisas amadas, lembranças saudosas, alegrias e tristezas comuns a toda condição humana.

Constatei isso ao reler, já impressos em bela edição, os versos que eu vira no original, La couleur des jours, o mais recente volume de poemas de minha querida amiga e grande poeta Béatrix Reynal. Eles têm, acima de todas as suas outras virtudes, essa qualidade cantante e límpida, que é o seu encanto maior. São versos que correm como um fio de água viva, têm cores de flor, perfume de terra fresca, azul de céu, calor de sol – e por isso se chamam exatamente – A cor dos dias.

O Brasil já sabe muito bem quem é Béatrix Reynal, esta brasileira adotiva, nascida lá onde a França tem seu coração ensolarado, na terra mais bela do mundo: a Provença, onde a poesia é um dom natural, onde os camponeses lavram a terra para plantar não apenas legumes mas flores, onde a erva do mato é a alfazema, onde as cigarras cantam alto como pássaros, e os pássaros cantam afinados como sopranos. Provença, meio-dia da França, – Arles, Nimes, Avignon, os Alpilles, – esses nomes já parecem letra de poema. Provença que foi o berço dos trovadores e do romance, – terra de Mistral e de Mireille. Lá na Provença nasceu Béatrix: e creio que, como bom poeta provençal, começou a fazer versos mal aprendeu a falar.

Mais tarde a vida, o casamento, trouxeram a nossa poetisa para o Brasil. Aqui se fixou numa casa maravilhosa à beira-mar, cheia de tesouros e arte, exemplar precioso de arquitetura provençal plantado nas areias de Ipanema. Aqui se fez amigos aos milhares, madrinha dos artistas, voluntária de todas as iniciativas de caridade, – pois como poeta genuíno sempre foi entre os artistas, as crianças e os pobrezinhos que ela teve os seus prediletos.

Foi aí que veio a guerra; e Béatrix lançou mão de tudo – seu tempo, sua saúde, sua fortuna, para socorrer a França em desgraça. O que foi esse esforço heroico, toda a gente o sabe, já o reconheceram o governo francês e o nosso, condecorando tantas vezes a nossa poetisa – Resistência, Legião de Honra, Cruzeiro do Sul, e tantas, tantas outras, que, se ela o quisesse, poderia andar com o peito constelado de medalhas como um general vitorioso. Talvez muito em breve seja publicada uma biografia narrando a vida, as batalhas, os triunfos dessa mulher ilustre. Hoje, porém, o que nos interessa é o poeta – pois os seus versos não precisam do nome da grande dama de caridade, da patriota infatigável, para terem realçados os seus méritos. Eles valem por si mesmos.

E, com os poemas na mão, ponho-me a pensar de repente: talvez seja até temeridade vir citar versos em francês, numa revista de grande público, como é esta nossa. Antigamente não diria o mesmo. Antigamente, no Brasil, quem não falava, entendia o francês como o seu segundo idioma. Hoje, que o domínio da língua francesa vai acabando no Brasil, dá até pena a gente inventariar as coisas belas e insubstituíveis que a mocidade perde, por culpa dessa ignorância.

Mas sinto a esperança de que a apresentação ao público brasileiro deste livro tão bonito, escrito por uma poetisa que é ao mesmo tempo uma grande francesa e, de coração, uma maravilhosa brasileira, seja uma forma de nos reaproximar da doce língua de França, hoje tão injustamente ignorada pelos moços.

E para lhes dar uma amostra do que é a poesia de Béatrix, quero transcrever aqui um dos seus poemas, não em francês, porém de forma mais acessível a todos, em belo português do Brasil. A tradução é de Carlos Drummond de Andrade. E basta a homenagem representada por tradução de tradutor de tão elevada categoria, para se aquilatar a importância do poema e da poetisa. Eis portanto a versão drummondiana de “Le beau soir”.

"Estar junto de você nesta noite tão bonita, me põe feliz. Tinha medo de não te ver mais.
Mas é você mesmo, você de verdade? Ah, nem posso acreditar.
No entanto, meu coração te esperava. Sem você, a vida é um bocado triste. Domingo, então, como a casa te espera!
Não diga nada sobre esses dias que passaram. É inútil. Você está aí, não é? Então tudo está perfeito."

rachel-de-queiroz
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