Está nos mapas e é importante. Culpa da nossa ignorância se não o conhecemos bem ou não o conhecemos de todo. Corre abrupto no meio da mata, cavando barrancas vermelhas, sem praias e sem areia, simples talhada de água secionando a floresta. E assim no seu mistério ― apenas um marulho a mais no quiriri do mato virgem, chega a ser estranhamente belo ― inspira um respeito de divindade aquática aos poucos homens que ousam lhe morar às margens e aos muitos que vêm de longe até elas, em jornadas de caça e pesca.

Até pouco tempo, no seu curso principal, antes de se atirar na corrente do Paraná, vivia em solidão, abeberando pacificamente as suas antas, os veados e as onças-pintadas, cujo miado ecoava de ribanceira em ribanceira assustando só os demais bichos por que de homem não havia sinal. Os índios já haviam ido embora e os brancos ainda não tinham chegado. Mas depois se descobriu a terra roxa cortada nas ribanceiras sangrentas, e logo os homens correram e estão derrubando a mata, e queimando os troncos enormes, e liquidando os palmitais esguios, enchendo tudo de café, que é tão doido pela terra roxa como vampiro por sangue; e ao mesmo tempo, como infalivelmente acontece em todo lugar onde aparecem homens, foram matando, queimando, destruindo, brigando, roubando-se uns aos outros, despojando os mais fracos, construindo, pecando, sofrendo, amando, se arrependendo: vivendo e civilizando.

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Conheci um homem que vive há quatorze anos às margens do rio Ivaí; mora sozinho com a mulher e a filha que para lá foi de colo e hoje é uma moça linda ― até faz pena tanta beleza sumida naquela solidão. Vivem num rancho de palmito, composto de uma camarinha e de uma sala que é cozinha também. As paredes são caules de palmeira rachados longitudinalmente e fincados no chão um ao lado do outro. O teto são cavacos de pau arrumados como telha. O chão é de terra desigual, os catres são improvisados ali mesmo com varas e palha. Candeias de azeite, raramente querosene, pois o primeiro “comércio” (que é como eles lá chamam uma vila), onde se pode adquirir combustível ou gêneros, fica a quatorze léguas de distância, ou seja, cerca de oitenta e quatro quilômetros.

Nessa vida que até um espartano acharia dura tem, entretanto, um luxo: as espingardas e os cães de caça. Compram-nas das mais caras, por vários contos de réis, nunca lhes falta munição especial, que mandam vir até de avião. E os cachorros perdigueiros ou cães da terra, mas sempre grandes e sempre magros, chegam a dar três contos de réis; isso mesmo vi oferecerem por um cachorro à toa na aparência, mas muito simpático, magrelão de pelo castanho-escuro por nome Fumo ― e por sinal o dono enjeitou a oferta.

No seu rancho solitário, vive o meu amigo da caça e da pesca no Ivaí. Mata antas, cuja carne é o principal alimento da família, mata veados, onças e, principalmente, procura matar lontras para lhes vender as peles. Pesca dourados e peixes mais miúdos ―  isso também só para a panela. A abundância de carne e peixe é lá tão grande que o rancho já tem um certo fartum de açougue. Não planta nada, a mata lhe brota ao pé da casa, como um paredão verde. Não cria, mesmo porque os bichos bravos lhe matariam o que criasse. Não sei como pretende casar a filha moça que passa o ano inteiro sem ver cristão ou bugre que seja. Agora tem um hóspede, um caçador que levou um tiro perdido na cabeça, ofendeu o juízo, ficou feito criança, sem falar nem fazer nada por si. Encostou-se no rancho, o pessoal teve dó, toma conta dele, sem nada esperar em troca, pois parece que o desgraçado não tem entendimento sequer para ficar agradecido. Pelo contrário, até arrisca um dia a doidice apertar e ele fazer alguma arte irremediável. E imagine se isso suceder num dia em que as mulheres estiverem sozinhas em casa como quase sempre acontece.

Eles, porém, não têm medo. Falou-se nisso e a resposta é que, fosse o caso de ter medo, também poderia uma onça doida descer em cima delas, uma sucuri sair de dentro do rio, um jacaré pegá-las na beira d’água enquanto lavam roupa. Por isso mesmo sabem atirar tão bem quanto um homem. E ademais, se um vivente fica louco e ataca aos outros, desconhecendo os seus semelhantes, pode sem pecado levar tiro como qualquer bicho bravo, porque, afinal de contas, a loucura lhe tirando o entendimento tirou-lhe também os direitos de cristão. Será o mesmo que matar uma onça.

rachel-de-queiroz
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