A doença se encobre em sete véus para a sua dança de morte. E usa mais de sete nomes, porque o povo tem medo de chamar o mal para si, dizendo o seu nome verdadeiro. Quem tem a esconde, e mesmo depois de morto os parentes quando se referem à moléstia que o liquidou, dizem apenas que o coitadinho era fraco do peito.

Aliás são essas metáforas características de toda terra onde grassa uma doença mortal. Nos lugares da lepra, ela é chamada apenas “doença da pele”. A maleita, nas zonas paludosas, é simplesmente “a febre”. A bouba, em certas zonas é “a flor”. Aqui no Rio a rainha do escuro reinado, a tuberculose, a T. P., a consumption, a tísica, é simplesmente o “mal do peito”.

E é quase só do que se morre — de mal do peito — na cidade de São Sebastião. E com ele se vive também — pois entre 100 vivos, quatro são tuberculosos. Todos os caminhos de acesso estão abertos à maldita — a comida ruim e pouca: o pouco leite, a carne pouca, a fruta nenhuma. O amontoamento das criaturas às dúzias em cada cubículo de casa de cômodo e aos três e quatro em cada cama; ou a moradia quase ao ar livre nas casinholas miseráveis de lata e tábuas que não protegem contra o frio nem contra o calor, nas favelas onde o povo vive bem pior do que muito bicho. As mudanças bruscas deste clima incerto, subitamente alterado de quente para úmido, de úmido para frio e para quente outra vez. Os transportes miseráveis, as longas esperas ao sol e à chuva, viagem perigosa e incômoda, que agrava perigosamente a fadiga do trabalho, já tão dura.

Os meninos pequenos parecem que já bebem o bacilo no leite das suas mães; e felizes deles quando a mãe tem leite, mesmo com bacilo. Porque outro leite é difícil.

Vede o caso do pequeno Roosevelt, meu conhecido: tem sete anos, parece três, já nasceu fraco e a mãe tuberculosa só lhe deixou de herança o nome importante. Cria-o a avó. Dorme com a velha na mesma cama, que é dengoso — tão miúdo coitadinho. Roosevelt é todo joelhos e olhos e orelhas transparentes. Tosse como um adulto: de manhã vai aquentar ao sol e dá uma dor no coração vê-lo estirar os ossinhos debaixo do casaco rasgado procurando um pouco de calor. Outro dia foi no hospital — e acharam a T. P. naturalmente. E aí se lembraram de examinar a avó e perguntar a sua história: apurou-se então que a velha desde mocinha sofria do peito e tinha hemoptises. Passou a doença ao marido e a quatro dos seis filhos que teve. Agora passara-a ao neto. E o mais curioso de tudo é que ela sabia que era doente, como os seus também o sabiam. E nunca separaram um colchão, nunca escaldaram uma xícara. Perguntei a um dos filhos escapados porque não separavam as coisas da mãe, a dormida da mãe — e ele respondeu que tinham cerimônia... Podia a velha se ofender...

As moças pálidas desfilam tossindo como Elviras; seriam as delícias do nosso triste Casimiro. E quando morrem, decerto, vão ser os anjos no paraíso do poeta. São costureiras e datilógrafas, caixeirinhas e enfermeiras, malcomidas, maldormidas. O vestidinho bonito, copiado da fita de cinema, encobre sabe Deus que misérias: desde a combinação cerzida, e os ossinhos à flor da pele, e o estômago sustentado com pastel da estação e sorvete de casquinha, até o pulmão infiltrado de bacilos.

Os homens se acabam nas oficinas, nos transportes, no cais do porto, nas fábricas. E o clássico malandro do morro — ide ver, quem fala na saúde e na alegria, no pitoresco e no romantismo do morro: ide ver como morrem malandros e cabrochas, mais que de briga, mais que de parto, mais que de amores — de tísica, cuspindo os pulmões na terra, enquanto o rádio aqui em baixo canta as venturas do morro.

Vede nos ambulatórios — os poucos ambulatórios, com os bancos cheios de gente, esperando: as mães trazem os filhos pequenos; e a gente não sabe se elas procuram ou doutores para si ou para os garotos com cara de velho — pois igualmente lívidas, e maltratadas, e caras chupadas de velha, são elas todas. E os médicos, — já é quase uma rotina — antes de qualquer outro exame, pedem logo o raio X ou o exame de escarro. E é surpreendente de ver quantas vezes o exame dá positivo.

São quatro por cento de tuberculosos entre os vivos. Mas tirando a porcentagem dos ricos, que pouco adoecem, qual será a incidência verdadeira da tuberculose entre os pobres?

Não será preciso que alguém faça alguma coisa? Afinal todos estão interessados em que haja povo, em que haja pobres. Que irão fazer os coitadinhos dos donos de fábrica sem operários que fiquem tísicos junto às suas máquinas. E os generais que não terão mais soldados para mandar à guerra? E os senadores que não terão mais eleitores para votar neles? E os padres e os bispos que não terão mais fiéis para encherem as igrejas? E a polícia, coitada, não terá mais a boa multidão para espancar a casse-tête e a espalhar a gás lacrimogênio. Coitados de brancos, pretos, mulatos e cafuzos. Coitados de nós, coitados da pátria. Porque acaba não tendo mais Brasil, nem pátria, nem nada. Só a terra verde, cheia de novo de ibirapitanga e de papagaios, — mas até sem índios. Porque os índios também são de carne como nós e também terão morrido do peito como nós morreremos, e não ficará ninguém para semente.

rachel-de-queiroz
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