Ora, graças a Deus, lá se foi mais um. Um ano, quero dizer. Menos um na conta, mais uma prestação paga. E tem quem fique melancólico. Tem quem deteste ver à porta a cara do mascate em cada primeiro do mês, cobrando o vencido. Quando compram fiado, têm a sensação de que o homem deu de presente, e se esquecem das prestações, que será cada uma, uma facada. Nem se lembram dessa outra prestação que se paga a toda hora, tabela Price insaciável comendo juros de vida, todo dia um pouquinho mais; um cabelo que fica branco, mais um milímetro de pelo que enruga, uma camada infinitesimal acrescentada à artéria que endurece, um pouco mais de fadiga no coração que também é carne e se cansa com aquele bater sem folga. E o olho que enxerga menos, e o dente que caria e trata de abrir lugar primeiro para o pivô, depois para a dentadura completa.

O engraçado é que muito poucos reconhecem isso. Convencem-se de que a morte chega de repente, que não houve desgaste preparatório, e nos apanha em plena flor da juventude, ou em plena frutificação da maturidade; se imaginam uma rosa que foi colhida em plena beleza desabrochada. Mas a rosa, se a não apanha o jardineiro, que será ela no dia seguinte, após o mormaço do sol e a friagem do sereno? A hora da colheita não interessa, ― de qualquer modo, o destino dela era murchar, perder as pétalas, secar, sumir-se.

A gente, porém, não pode pensar muito nestas coisas. Tem que pensar em alegrias, sugestionar-se, sugestionar os outros. Vamos dar festas, vamos aguardar o Ano Novo com esperanças e risadas e beijos congratulatórios. Desejar uns aos outros saúde, riqueza e venturas. Fazer de conta que não se sabe; sim como se a gente nem desconfiasse. Tudo que nos espera para 1952: dentro do corpo o que vai sangrar, doer, inflamar, envelhecer. As cólicas de fígado, as dores de cabeça, as azias, os reumatismos, as gripes com febre, quem sabe o tifo, o atropelamento. Tudo escondido, esperando. Sem falar nos que vão ficar tuberculosos, nas mulheres que vão fazer cesariana. Os que vão perder o emprego, os que se verão doidos com as dívidas, os que hão de esperar nas filas ― que seremos quase todos. E os que, não morrendo, hão de ver a morte lhes entrando de casa adentro, carregando o filho, pai, amor, amizade. As missas de sétimo dia, as cartas de rompimento, os bilhetes de despedida. E até guerra, quem sabe? Desgostos, desgostos de toda espécie. Qual de nós passa um dia, dois dias, sem um desgosto? Quanto mais um ano.

Claro que também sucedem alegrias. Um filho nasce perfeito, um livro aparece bem, um amor começa, um dinheiro cai do céu, faz-se uma viagem à Europa. Mas são alegrias misturadas, como o pão que comemos. O menino novo sempre adoece, ou sofre de insônias, ou não tem apetite, ou é de mau gênio. O livro suscita crítica e invejosos, além dos que sinceramente não gostam. O amante pode ser ciumento, ou pobre, ou volúvel, ou casado com outra. E o dinheiro é como o diabo, não anda sozinho, tem sempre rabo e chifres. Até a viagem ― vá lá e depois diga. Enquanto as tristezas, muitas delas chegam a ser quimicamente puras, sem um risco sequer de alegria, totais, cristalinas ― só tristeza mesmo, desgosto em quintessência, droga de vida, sem nada, nada de nada, para aliviar.

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Consolo? Tem um, excelente. Como passou o 51, também há de passar o 52. E passarão também todos os que estão na nossa conta, felizmente curta. Alguns podem nos parecer excessivamente longos, maiores que os vizinhos, mas será ilusão dos sentidos. Dizem os astrônomos e matemáticos que os anos são todos do mesmo tamanho, exatissimamente, sem diferença de um minuto. Como o metro linear, obedecem a uma convenção internacional.

E já que a coisa única que resta é beber à saúde do ano novo e fazer votos, bebamos e façamos os nossos votos, e cada um peça aos deuses ou aos santos aquilo de que mais se sente carecido.

Eu, de mim, confesso que não me atrevo a pedir venturas nem prosperidades. Peço apenas uma coisa: paciência.

rachel-de-queiroz
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