Isto hoje é uma espécie de carta: queria endereçá-la aos meus jovens colegas da imprensa diária, aos que fazem a cobertura dos casos de polícia, e especialmente dos crimes misteriosos.

Diz-se que no Brasil ainda não pode haver romance policial porque, primeiro, os crimes não convencem – são muito primários, muito pouco sofisticados. Segundo, porque não dispomos de nada que se pareça com o herói obrigatório dessa literatura: o detetive que tudo solve. Mas ante a pletora de assassinatos misteriosos que têm sido cometidos aqui, de uns anos para cá, parece que a primeira condição, quer dizer, os crimes complicados e aparentemente insolúveis, já foi satisfeita. Quanto ao detetive, quem sabe se os ficcionistas inventarem no papel algum fabuloso Sherlock, ele, em seguida, nos aparecerá em carne e osso, de acordo com o vício que tem a vida de imitar a arte?

Porém, enquanto esse detetive genial não aparece, meus queridos rapazes da imprensa, pelo amor de Deus, tenham tento na língua e na imaginação! É natural que a jovem cabeça de vocês trabalhe, quando veem uma linda moça morta a bala no seu automóvel de luxo, ou defrontam com duas senhoras de crânio afundado num velho casarão da Tijuca, ou sabem de um rapaz baleado misteriosamente numa escada enquanto namorava, ou deparam com o cadáver semidespido de uma linda mulata atirado dos despenhadeiros dessa famosa e sinistra “Chácara do Céu”; ou a francesa estrangulada no seu apartamento, ou a senhora caída do 22° andar, ou a dentista de S. Paulo que além de morta estava toda amarrada no seu quarto de dormir, – e tantos, tantos outros crimes aparentemente “perfeitos”, que uma polícia desaparelhada e bisonha fica a remoer meses e meses, perdida numa floresta de suspeitos; e que por fim, depois de prender meio mundo, inculpar meio mundo, arquiva e trata como caso esquecido.

O que eu queria pedir a vocês, rapazes, é que, por ocasião desses crimes de solução difícil ou impossível, vocês, além de exercitarem a imaginação e a inteligência, exercitassem também a piedade. Tenham dó das pessoas direta ou indiretamente envolvidas nesses pavorosos casos, as quais, enquanto não se lhes provar a culpabilidade, têm direito ao menos ao benefício da dúvida, para não falar na presunção de inocência. Não sei se nessas ocasiões vocês jamais se colocaram na posição de espectador: mas posso lhes afirmar que a impressão do espectador é horrível. A Polícia, no seu primarismo, atira a culpa ao que estiver mais perto. E vocês então devoram o pobre coitado jogado às feras – que digo? – vocês mesmos, não se zanguem! – mas vocês é que se portam como feras, dilaceram o desgraçado, revolvem-lhe os sentimentos mais íntimos, escavacam-lhe o passado, presumem-lhe o presente e o futuro. Nas manchetes e em página inteira de jornal dão violenta publicidade às hipóteses mais espantosas que os policiais sugerem, sem um instante de compaixão pelas pessoas envolvidas e que, até mesmo por simples lógica, não podem ser todas culpadas. E, em verdade, na maioria dos casos, são mesmo inocentes. Que comédia de escândalos, por exemplo, tem fornecido o mais recente desses crimes – o da moça no automóvel! Foi o amante, a moça esperava um filho! – Veio o exame médico-legal e, segundo li mais tarde, a moça era virgem e portanto não tinha amante, quanto mais filho. Foi o pai, foi o doutor! Foi a mãe! Sim, até a mãe tem sido acusada em manchetes. Não seria muito mais humano esperar por uma prova, um fato concreto, não apenas presunções mais ou menos vagas, para se lançar na imprensa essa espantosa acusação que revolta a própria natureza humana?

E o caso das duas senhoras assassinadas na Tijuca? Fizeram-se hipóteses de arrepiar. Arrastou-se em lama de sangue o marido e genro das vítimas, – Landru seria um santo junto dele. Depois largaram de mão, não sei se arquivaram o processo por falta de provas. Mas, inocente ou não, o infeliz é, para todos os milhões de pessoas que lêem jornal, um dos mais refinados monstros que o mundo conheceu. E se, entretanto, esse pobre homem não matou as mulheres? Vocês já pensaram na sua vida irremediavelmente destruída, na negra calúnia que o acompanhará como uma lepra, – só porque a polícia é incompetente, só porque vocês têm imaginação a mais e caridade a menos?

Lembram-se daquele inglês que apareceu morto em S. Paulo? A primeira pessoa que os jornais acusaram foi a viúva. Sem provas, sem nada, – porém, a moça era bonita, seria impressionante fazê-la assassina. Parece que depois o caso se resolveu e pegaram o criminoso real. Mas isso era uma espécie de anticlímax, que ocupou algumas curtas linhas de pé de página e que ninguém leu.

E aquele tristíssimo caso da mocinha seduzida pelo seu neurótico e idoso professor de violino? Botando a mão na consciência, vocês não se sentem um pouco culpados por aquela dupla tragédia, de tanto que espicaçaram um psicopata com os excessos de escandalosa publicidade?

*

Meninos, a imprensa do Brasil é uma das mais vivas e bem feitas do mundo. Em particular nós, que dela e por ela vivemos, sabemos que muitas vezes tem sido aqui a imprensa o único recurso, o único apelo das liberdades ameaçadas do cidadão. Não esquecemos que foi uma entrevista de jornal que abriu a primeira brecha na ditadura, em 45. Não fossem vocês, sua coragem, sua bravura, que procuram notícias debaixo de bala, de fogo e de água, que se atiram em paraquedas, enfrentam metralhadoras, pegam cadeia, tomam surras e até mesmo são assassinados, como o foi o pobre Nestor Moreira – não fossem vocês e este país ainda estaria muito pior no capítulo das liberdades públicas. Muito do que ainda nos resta de democracia, devemo-lo a vocês, à coragem e à obstinação dos chamados “rapazes da imprensa”. Mas há casos em que vocês agem como o aprendiz de feiticeiro e parecem desconhecer o poder mortal do instrumento que têm em mãos. Quando, por exemplo, publicam em caixa alta a hipótese impiedosa de que talvez a mãe seja a matadora da filha, não pensam na desgraçada mulher que essa provável injustiça irá destruir para sempre – pensam apenas que estão dando um “furo” nos colegas, ou andando dez metros à frente da polícia.

Sim, é um raio de morte que vocês têm na mão. Pode matar o culpado, mas também pode ferir incuravelmente o transeunte inocente, o inocente espectador. Lembrem-se de que todo mundo, antes de que seja demonstrada a sua culpa, tem direito à presunção de inocência. E só digam, pois, que o pai matou a filha, ou o filho matou a mãe, quando o fato estiver provado. E assim mesmo, digam-no em letra pequena, com pouca ênfase; afinal, casos como esses, não merecem que os celebremos aos gritos, como feitos memoráveis. São para serem contados baixinho, com vergonha e com horror.

Justiça, rapazes, justiça. E junto com a justiça, um pouco de caridade: é a melhor combinação do mundo.

rachel-de-queiroz
x
- +