
Pelé (Edson Arantes do Nascimento), Brasil, 1982. Foto de Madalena Schwartz/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Em homenagem aos 85 anos de Pelé, que seriam comemorados em 23 de outubro, selecionamos algumas das vezes em que o Rei encantou os cronistas com seus passes. Ao longo das duas décadas em que reinou nos gramados, não foram raras as vezes em que sua habilidade incomparável ilustrou o palmo de prosa publicado na imprensa.
É difícil precisar, mas, do nosso elenco, Carlos Drummond de Andrade deve ter sido quem mais escreveu sobre o craque. De suas tantas crônicas, a definitiva foi feita no calor da mais importante conquista histórica do jogador. “Pelé: 1000” é uma reflexão poética sobre aquele tão aguardado milésimo gol que, na noite de 19 de novembro de 1969, sacudiu a rede do Vasco para alegria não apenas dos santistas, mas de todos os brasileiros, incluindo os vascaínos como Drummond: “O difícil”, escreveu ele no jornal, “não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”.
Para o poeta, conhecedor profundo do ofício criativo, o futebol é arte, e toda obra de arte, seja “em forma de gol ou de texto”, se revela ao artista ainda em estado bruto, numa estranha forma de “coisa-em-ser na natureza”. Por uma “fatalidade à margem do seu saber técnico”, coube a Pelé a façanha de mil vezes transformar coisas-em-ser em comemorações de gol.
Se tornar-se Pelé fosse apenas uma questão de prática e treino, “por que não há 11 Pelés em cada time?”, indagou o cronista. O mais provável é que o talento seja um produto divino, independente de “vontade, formação e mestria”. E que o gol seja concedido pelo próprio Deus, que “se diverte negando-o aos que imploram”. Felizmente, para a nossa sorte, a ciência ainda não explicou tudo neste mundo.
Dois anos depois, Rachel de Queiroz conheceu “O Rei Pelé” num evento da editora José Olympio. Depois de cumprimentá-lo, a escritora ficou observando-o transitar entre seus admiradores, que iam de ministros de Estado a jovens trabalhadores humildes. “É curioso como ele consegue ser impecável em tudo”, escreveu – na roupa, no timbre da voz, no aperto de mão. Até nas manobras precisas para desviar da “marcação cerrada de fãs que o cercam”, como se estivesse em campo. Esse foi o povo que pôs em sua cabeça uma coroa. Não era possível dizer quanto tempo duraria o seu reinado, “porque o futebol é uma máquina devoradora”. Mas mesmo se um dia fosse destronado por outros nobres da bola, Pelé jamais perderia a fidalguia, pois sua nobreza era natural. “Príncipe ele não é porque o fizeram: príncipe ele é porque príncipe nasceu”, concluiu a cronista.
Em 1977, quando o jogador estava para se aposentar em definitivo nos Estados Unidos, Carlinhos Oliveira escreveu a “Contrapologia de Pelé”, uma espécie de apologia às avessas, relembrando a “legião de contra-admiradores fanáticos” do Rei. Formado principalmente por pessoas dos “meios intelectuais ditos sofisticados”, esse grupo se unia em torno do “ódio amoroso” ao maior atleta do país, um sentimento que o cronista classificou como paradoxal. Essas pessoas, “sempre a favor das minorias sofridas”, queriam que Pelé assumisse um posicionamento político naquele cenário fervilhante de protestos e mudanças. Achavam que o monarca do futebol, após marcar seu milésimo gol, poderia fazer mais que pedir pelas crianças desassistidas do Brasil. Queriam que “ele erguesse o punho fechado e aderisse ao penteado afro”, alinhado aos movimentos negros revolucionários.
“A gente aqui sofrendo por falta de amor, de dinheiro, de talento, de comida, de direitos democráticos”, ponderou o cronista com ironia, “e lá vem Pelé e desmente tudo”, provando que a felicidade, a vitória e a alegria são possíveis. É demais para qualquer coração sofredor. E, contudo, lá estava ele, Edson Arantes do Nascimento, o menino pobre que, numa longínqua noite de Natal, ganhou o mundo de presente do Papai Noel e dele ouviu: “Isto é uma bola. É sua. Vá, brinque com ela!”.