
Série retratos-Clarice Lispector, Rio de Janeiro, agosto, 1969. Foto de Maureen Bisilliat. Coleção Maureen Bisilliat/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Hoje é dia de celebrar os 105 anos de Clarice Lispector, a mais influente de nossas escritoras. Fique à vontade para passear sem rumo pelo site especial que o Instituto Moreira Salles mantém em sua homenagem e espiar depoimentos, fotografias, ensaios e até videoaulas. E já que você gosta mesmo de crônicas, não deixe de pescar algumas das 30 claricianas disponíveis aqui no Portal, todas do período em que ela se lançou ao ofício de cronista no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973.
Na imprensa, a escritora teve uma carreira considerável – A descoberta do mundo, seu primeiro livro de crônicas, é um catatau de 468 textos. Mais recentemente, em 2018, outros 120 somaram-se à reedição de sua obra no volume Todas as crônicas. Não bastasse as preciosidades de sua própria lavra, Clarice ainda inspirou as páginas alheias. Não foram raras as vezes em que os amigos escreveram sobre as peculiaridades de sua personalidade enigmática.
Em “Mãe, filha, amiga”, Otto Lara Resende conta que pressentiu a morte da colega, com quem tinha uma amizade duradoura. Em 1977, um dia antes de completar 57 anos, ela foi levada por complicações de um câncer nos ovários. Otto recebeu a notícia por telefone. Pouco depois de encerrada a ligação, o aparelho voltou a tocar. “Fiquei com medo de ser a Clarice, para me passar um pito”, escreveu o cronista. Para a “mediúnica e adivinhante” Clarice Lispector, nada soava verdadeiramente improvável.
Na crônica, Otto relembra outros episódios de camaradagens e estranhamentos, bem ao “jeito brusco e carinhosíssimo” da amiga. Como da vez em que, acompanhado do filho pequeno, topou com a escritora em Copacabana. Os dois não se viam há tempos e o menino não a reconheceu. Perguntou quem era aquela moça loura e, antes de receber resposta, emendou: “Ela tem dentro dela uma coisa que pula o tempo todo”.
Otto achou graça e contou o episódio para Fernando Sabino, que o transformou numa daquelas suas simpáticas historinhas de diálogos. Mesmo com os nomes omitidos, Clarice não digeriu bem a crônica “Uma coisa que pula”, disponível também em áudio na leitura de Bruno Cosentino, ao saber que era ela a mãe esquisita e digna de pena aos olhos da criança.
Muitos anos depois, durante uma conversa de madrugada, ela retomou o assunto de repente para aplicar um corretivo atrasado e avassalador em Otto: “Diga ao seu filho que eu posso ser mãe, sim. Posso ser mãe dele. Posso ser sua mãe, Otto. Posso ser mãe da humanidade. Eu sou a mãe da humanidade”.
Para se despedir da colega de profissão, Maria Julieta Drummond de Andrade também dedicou a ela uma crônica: “Em forma de pomba” reconta a única vez em que estiveram juntas. Clarice estava de passagem por Buenos Aires, onde Maria Julieta morava, e propôs um almoço para se conhecerem. Empolgada, a professora da Universidade de Buenos Aires “caprichou no vestidinho verde e azul” e chegou pontualmente ao hotel. Mas Clarice já tinha saído, e sem deixar recado.
Graças às pistas dadas por um porteiro, a escritora foi encontrada num salão de cabeleireiro próximo e abraçou a colega com alegria, como se estar num lugar diferente do combinado fosse “a coisa mais natural do mundo”. E então partiram não para o restaurante acordado, mas para o apartamento de uma senhora desconhecida que, reconhecendo a autora de A paixão segundo G.H., fez questão de convidá-la para almoçar.
No caminho de volta, uma pomba interpelou o trajeto das duas brasileiras. Maria Julieta não prestou atenção ao mais banal acontecimento das cenas urbanas, mas Clarice fitou a ave longamente, como se testemunhasse “um milagre único e insubstituível”. Ela segurou a mão da colega com firmeza e pediu que escrevesse uma história sobre aquela pomba. Pega de surpresa, Maria Julieta concordou. Mas não deu tempo. Pouco mais de um ano depois, Clarice partiu sem ter lido a narrativa encomendada. O jeito foi escrever a crônica para pedir desculpas e “te mandar este beijo, Clarice, em forma de pomba”.