Aos jovens que me consultam, desejosos de fazer carreira literária, gostaria de aconselhar, como exercício de prática da língua e manejo da palavra escrita, o trabalho de tradução. Não tanto pela língua da qual se traduz, mas pela língua para a qual se traduz.

Ler um pensamento em idioma estranho e transportá-lo para o vernáculo, procurar-lhe nova forma, nova vestimenta, é na verdade um exercício fascinante para quem ama a arte de escrever. Está muito perto do trabalho de criação, e às vezes chega a ser criação mesmo, porque na verdade o tradutor é, acima de tudo, um colaborador do autor traduzido.

Idiomas são criações espontâneas de um povo, a expressão oral do seu pensamento, da sua visão do mundo, a formulação do seu senso de valores, além do processo de comunicação indispensável às relações mútuas entre os indivíduos desse povo. A língua parte do imponderável, que é o pensamento, para o mensurável e objetivo, que é a palavra, falada ou escrita. Sua composição não obedece a fórmulas matemáticas e sua ciência é empírica. De forma que cada idioma é, sozinho, uma unidade inviolável, e língua nenhuma do mundo pode ser traduzida exatamente para outra língua. Quem traduz procura apenas a “aproximação” melhor e não a “correspondência” absoluta, porque essa não existe. Aquele que escreve em alemão, pensa em alemão e, pois, traduzindo uma sentença alemã para o português, você, em vez de procurar logo as palavras portuguesas correspondentes ao que leu, deve primeiro pensar em português aquela sentença alemã, e depois traduzir em palavras portuguesas aquele pensamento. Sinônimo só não serve, tem-se que procurar o sentido essencial. É clássica a anedota do professor que mandou o aluno traduzir em sinônimos a frase: “Vapores brancos flutuavam no céu” e obteve: “Navios alvos boiavam na atmosfera”...

Sim, até nas fórmulas mais simples tem-se que procurar a correspondência e não a tradução literal. Se traduz do francês, você não vai dizer que “ama comer cenouras”, mas que “gosta de cenouras”, e, do inglês, diz que uma pessoa “se veste” e não que “bota a roupa em cima”, nem chama o seu sogro de “seu pai na lei”...

*

Fazia muito tempo que eu não traduzia e, contudo, botar em brasileiro livros em francês, inglês e espanhol foi, durante anos, o meu meio de vida. Agora, sem querer, voltei ao ofício, aliciada por meu velho amigo Paulo Rónai, a contribuir para uma interessante obra de cultura: a Coleção Nobel, que a Editora Delta lançou no Brasil. Se isto é promoção, valha a promoção, que a iniciativa a merece e deve ser imitada. Na nossa terra, onde são tão raros os livros de luxo, e os que saem são quase que só destinados à estante dos bibliófilos, a linda Coleção Nobel, encadernada em branco e ouro, com ilustrações especiais de grandes nomes das artes plásticas da Europa, traduzida — exceto a abaixo assinada — por gente do melhor gabarito, merece aplausos desinteressados. Lagerlof, Maeterlinck, Momsen, Mistral, Kipling —todos os laureados do Nobel, desde o lançamento do prêmio até os nossos dias, aparecem em português sob corresponsabilidade de Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Guilherme Figueiredo, Lúcia Benedetti, R. Magalhães Júnior, e vários outros nomes prestigiosos. A mim, coube-me uma das flores da coleção, o livro de contos de Verner von Heidenstam (Prêmio Nobel de 1916), em que se narram episódios da epopeia de Carlos XII, aquele Coração de Leão dos séculos XVII/ XVIII, que foi ao mesmo tempo a glória e a ruína da Suécia.

E voltei a sentir que é bom traduzir. Pensando bem, é mesmo uma atividade generosa, um ato de fraternidade. A gente reparte com os outros, que não conhecem aquela língua, um tesouro de pensamentos e palavras a que eles de modo nenhum teriam acesso, não fosse o intermédio do tradutor.

*

Ao contrário da crença reinante entre os que não traduzem — (e entre esses contam-se editores e a maioria dos leitores) — o mais importante não é saber a língua original, mas sim a língua para a qual se traduz. Muita vez se escuta dizer: “Dei para traduzir esse livro de Tolstói a fulano de tal, que é russo de nascença”, — mas saberá esse russo português suficiente para estar à altura da tarefa? É muito comum, em livros traduzidos, encontrarem-se tradutores que sabem um horror de inglês, mas muito pouco português, e entregam ao público versões lamentáveis, repletas de anglicismos, com construções inteiramente anômalas; no teatro, então, é comum e horrível. Criaram até uma meia-língua bastarda, que não é mais idioma nenhum, embaralhando-se em formas compostas de verbos, em ordem direta e inversa, — sabe Deus as coisas que eles inventam! Vemos muitas vezes um ator em cena interpelar outro: “O que quer você com dizer que eu não tenha estado lá?” quando simplesmente a frase em português humano seria: “Quer dizer que eu não estive lá?”

Ah, as pérolas que se catariam nas traduções que andam por aí e das quais nenhum de nós, do ofício, está livre... Como aquele que traduzia “there is little room for doubt” por “no pequeno quarto das dúvidas” ou “I’m supposed to be…” por “Eu ando suposto…”

Quem não tiver a sua pérola, atire a primeira pedra...

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.