Podia ser um homem cheio de recalques, tirando vingança da humanidade pelos seus desejos frustrados. Porque afinal, se uma criatura é nascida e criada junto à pancada do mar, vendo todo dia o sol despontar dentro do horizonte marinho; tendo por brinquedos de menino búzios e conchas da praia, por comida principal peixe e marisco ― haverá nada mais natural do que essa criatura resolver ser marinheiro?

E como tem ambições, não quer ser um simples pescador de jangada e saveiro, feito o pai e os tios, destina-se a voos mais altos e se engaja na marinha mercante.

Porém, estranhos e confusos são os caminhos da marinha mercante; não só com engajar-se e embarcar faz-se o homem marinheiro. Podem destiná-lo a taifeiro, por exemplo, e desse jeito jamais terá noção de que anda realmente embarcado. Só sabe que vive no mar por causa do balanço e do enjoo; o mais, as brisas marinhas, as límpidas noites dos trópicos, o horizonte sem fim, o cheiro salino do ar, os cardumes de sardinhas que acompanham a esteira do navio, isso ele jamais verá, senão num vislumbre perdido. Seu destino são as regiões inferiores do barco, os corredores forrados de passadeiras intermináveis e iluminados de dia e de noite, as portas dos camarotes uma em seguida da outra, numeradas como portas de cubículo numa prisão, as bandejas de café, almoço, merenda e jantar, o arranjo matinal dos beliches, os luxos dos passageiros enjoados, a melancolia das raras amizades de passagem, e as gorjetas mesquinhas, e os arrogantes que exigem milagres porque pensam que com aquela mísera gorjeta compraram a alma e o corpo de um escravo.

Essa a vida do taifeiro, ou camaroteiro que, menino de beira de praia, sonhou quando crescido tornar-se homem do mar. Aquela decepção, aquela frustração, a farda branca e engomada para quem sonhou enfrentar com capa de oleado a onda azul, a bandeja e o espanador para quem cuidou ter na mão a roda do timoneiro.

Pois esse foi o destino de Artur, que nasceu perto da foz do São Francisco e desde pequeno sonhava com ser marujo. Tentou cumprir sua sina, engajou-se; apenas a sua sina não era de marujo, era de taifeiro, ― diferença que ao menos avisado pode parecer simplesmente uma sutileza, pois não andam ambos navegando pelo mar?

Contudo, Artur fez da sua frustração uma vitória, e nunca levou em conta a desvantagem da troca. O serviço penoso e exasperante, quem o vê a cumpri-lo, pensa que se trata de uma rotina leve e agradável. A cortesia, o bom humor, a solicitude com que trata os doentes e os enjoados. A fala branda do nortista, a risada franca, a facilidade para tudo. A fruta que aparece sempre que é preciso, e o leite quente, e chá fresco, e as toalhas imaculadas. E a senhora idosa enjoa menos, e o menino manhoso deixa de chorar, e o cavalheiro irritado para de vociferar contra o Lóide, quando Artur chega, atendendo ao toque do botão elétrico, tão rápido como o gênio de Aladim, e ri dos seus problemas e os resolve num minuto.

Não sei se existe medalha de mérito para taifeiros do Lóide; mas se não existe, será bom que a inventem. Que fabriquem pelo menos uma e a ponham estrelando no peito desse homem bom e útil, ― camaroteiro Artur, ala esquerda do convés especial, navio Pedro II.

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