E 38º a 40º à sombra tem sido a temperatura do Rio em muitos dias deste verão de 49. O ar dá para ser apanhado às colheradas, de tão espesso e morno. Brisas são meros sonhos, as folhas das árvores imóveis parecem feitas de papel e arame, para um cenário de filme. O mar, no fundo da baía, é uma lâmina de estanho lisa e espelhando fogo. Até os pássaros têm medo do ar e é raro avistar-se um risco de asa cortando o céu.

E nessa fornalha viva assim mesmo os homens labutam. Erguem paredes, misturam massa, soldam aço, derretem asfalto, britam pedra, varrem ruas, descarregam navios, capinam o chão e cavam a terra. Homens mal alimentados, mal agasalhados, que sofrem de doenças mal curadas, que não se sentem em segurança em relação a si próprios nem em relação aos seus. São esses os mestiços indolentes das anedotas e dos livros de viagens, esses os caboclos mulatos do “prantando dá”. Quando o corpo pede apenas sombra, refresco e sesta, enquanto os chamados brancos se não sobem para Petrópolis, se refugiam nos cinemas refrigerados, se amontoam nas confeitarias tomando toneladas de sorvete, eles mourejam ao sol. A patroa num deux-pièces de piquê branco deita-se na rede da varanda e pede uma cajuada geladíssima: enquanto isso, ao mormaço escaldante, abrigada do sol apenas por um pedaço de folha de zinco, a sua lavadeira esfrega roupa numa tina e tira água aos baldes do poço de quatro metros.

O ilustre escritor Richard Katz, no seu belo livro Viagem pelo Amazonas faz comentários muito justos a respeito da lenda que é essa nossa famosa indolência e do tremendo esforço que representa qualquer trabalho físico debaixo dessas temperaturas de forno. É um dos poucos europeus que nos fazem justiça nesse terreno, e em vez de nos acusar pelo pouco que temos feito, antes louva o muito que já fizemos dentro de tais condições. Chega mesmo à ousadia de traçar paralelos e imaginar o que seria dum branco nórdico derrubando madeira no Amazonas num calor de mais de 37° à sombra...

Na pedreira atrás de minha casa, os empregados da Prefeitura quebram pedra para os calçamentos da rua. Pegam oito horas por dia no sol escaldante, lidam com dinamite, com ponteiro e marreta, ou metem calhaus nos britadores que na hora do sol forte tiram fogo, literalmente. Não sei quanto ganham. Mas não devem ganhar nenhum despropósito. Sei onde moram, é por esses morros sem água e sem luz elétrica, em barracos de taipa; sei o que vestem — vejo-os todo dia na rua, e posso afirmar que não usam seda nem linho; sei o que comem — mais de uma vez tenho visto a marmita modestíssima onde conduzem o almoço; o dinheiro deles não é pois tanto assim como se diz. Contudo, de verão e inverno, lá estão eles no pesado; de noite ainda dançam e vão ao cinema, ou namoram por essas beiras de praia, e aos domingos tomam banho de mar e jogam futebol. São uns fracos, realmente... Forte é o alemão da esquina, que trabalha de camisa de cambraia de linho no escritório refrigerado, come dieta de verão, anda de automóvel particular, e assim mesmo, outro dia foi parar na Assistência, com insolação, porque se meteu a dar um passeio a pé ao meio dia em ponto... 

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