Fala-se tanto mal do Rio, conta-se tanta miséria e tanta desgraça que é bom, de vez em quando, lembrar um pouco que existe também o contrário.

Morre-se de tuberculose, de fome, morre-se principalmente por automóvel ―  embaixo deles e dentro deles. Mas também se vive, de tantas maneiras ou mais, também se vive, ora ― e quanto!

Vida de pobre, que não tem propriamente onde morar, só barraco e cortiço; que quase não tem condução, que paga caríssimo o que come, quando come. Nessa vida é que estou falando, que é ela que tem as suas compensações. Cidade dos ricos ― essa não guarda mistério nem força secreta. O Rio da gente bem brilha muito nos guias de turismo, tem a paisagem e tem as boates, tem debutantes e patronesses, tem pitoresco e as famosas pessoas “simpáticas” ― é tecnicolor e internacional, sempre as mesmas cantoras, os mesmos microfones, a mesma gíria faisandée que vem de New York, Buenos Aires e Paris ― os mesmos desfiles de modas, as mesmas corridas de cavalos, e os eternos chatos funcionando.

Mas na pobreza da cidade é que está a sua força. Como talvez na pobreza de toda cidade, de qualquer cidade. A roupa nos varais pelas encostas de Santa Teresa, a vida desenfreada na rua Riachuelo, as casas de cômodos de Botafogo, os auditórios de rádio, os cinemas-poeira, as rinhas de galo. E o futebol, acima de tudo o futebol.

É a mágica da cidade, que não se sabe direito onde é que opera. A de Paris, dizem que está no ar. Mas aqui no Rio onde é que estará? No ar não creio, que não é leve, nem seco de champanha, nem sofisticado como o parisiense. Talvez venha da terra, da areia da praia, talvez desça dos morros. Tanta tolice literária, tanta cantiga ruim, tanto filme péssimo que já se fez inspirado no morro carioca ― e assim mesmo não se exterminou o seu filão poético. Está muito no Carnaval, mas não é apenas o Carnaval. Extravasa pelos sambas, anima as expansões dos namorados, tão ardentes e tão inumeráveis que de vez em quando é preciso armar uma cruzada policial para os conter nos limites.

Está um pouco nos negros, sim está decerto muito nos negros. Eles que têm essa alegria e essa tristeza inocentes e espontâneas, base de toda paixão humana. Está na lenda dos malandros, Zé da Ilha e Carne Seca; aqui trata-se tudo levianamente, assunto de vida e assunto de morte, cadeia e navalha, religião e política. Vai-se pela simpatia, por uma palavra, por uma risada, por um dito.

Está no jogo do bicho, e, depois do bicho, no jogo de ronda. Está nas rezas de Umbanda, na devoção ao Senhor São Jorge que também se chama Ogum, nos buquês de rosas brancas atadas com fita azul-claro que se atiram nas águas da baia em homenagem a Iemanjá. Na malandragem e na preguiça, essa preguiça que é um dom dos santos, que deixa a gente cozinhando feliz sob o sol da praia, e mal reclama o atraso dos trens elétricos, e madorna nas barcas da Cantareira, no rastejar dos bondes, e nos botequins de subúrbio, bate caixas de fósforo de olho entrecerrado, cantando lá de dentro da alma: ―  “trabalhar, eu não, eu não”...

rachel-de-queiroz
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