Chegamos agora ao fel do cálice; pois Carnaval, como tudo que é bom, no princípio adoça e no fim amarga. A sorte é que a Santa Madre Igreja, na sua milenar sabedoria, arruma sem falha uma Quaresma após cada Carnaval, proporcionando assim a cada pecador as cinzas da penitência e os jejuns da reparação.

Resta saber é se o Carnaval já não foi inventado expressamente como preparativo da Quaresma, fornecendo ao fiel o pecado, para que ele tenha do que se arrepender.

Sim, porque o homem que passou o ano na virtude, se, em chegando a Quaresma, pretender carpir-se e bater no peito por culpa dos erros que não pecou, esse homem é um hipócrita, um fariseu. Enquanto que o bom folião, carregado de samba e cachaça, usando de boa contrição e morrendo de repente, pode ainda esta noite estar com o Bom Ladrão no paraíso. E até não morrendo, o jejum ainda lhe fará grande bem ao fígado.

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Aqui na ilha as novidades foram poucas.

Teve uma moça que fugiu com um soldado, mas – coitado do praça – era arranchado, havia de levar a menina para o quartel? E ainda mais fantasiada de havaiana, com a saia de celofane toda rota, o cabelo solto nas costas, colar feito com fruta vermelha de rebenta-cavalo e sapato de corda china-pau, já com os cordões estourados.

Por isso, quando chegou a hora de voltar ao quartel, o soldado levou a moça ao botequim e mandou encher um copo de refresco com batida de maracujá. Ela bebeu, deitou a cabeça na mesa e dormiu. Ele então pagou a despesa e saiu no macio. Pobrezinha da moça, quando acordou fez aquela algazarra. Disse que era moça donzela, que o soldado prometera casar na quarta-feira e outros etc. – Está na casa do homem do botequim, porque o pai já disse que não recebe no seu lar honrado nenhuma filha da Lua.

Teve também o caso do marido que batia na mulher durante o ano inteiro. Neste Carnaval se trajou de baiana, botou corpinho recheado, pintou a cara, amarrou lenço na cabeça, ficou que era uma Carmen Miranda. Mas quando, seguindo o velho costume, foi levantar a mão para a companheira, teve uma surpresa. Ela, que estava engomando (e logo o terno branco do perverso), encostou-lhe o ferro quente bem no traseiro, lá nele, até que a fumaça subiu. O homem berrava, mas estava encantoado entre a parede e o fogão. E quando se virava para segurar as mãos dela, a mulher lhe chegava o ferro ao rosto; aí ele tinha que dar as costas mesmo, pois sempre era melhor.

Quando o ferro foi tirado, já tinha aberto um rombo na saia de baiana.

Levaram a ele para a Assistência e a ela para o Distrito.

Perguntada pelo delegado, declarou a mulher que o pai dos seus filhos andava de calça e ela sabia respeitar. Mas aquela catraia de baiana não respeitava não. E estava com a razão, não estava?

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Adeus, Carnaval, até o ano que vem.

rachel-de-queiroz
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