Ou tráfego? Nunca sei direito se o problema é de trânsito ou de tráfego, ou ambos. Mas seja qual for é horrível. Ainda outro dia, vinha a gente de Teresópolis, direitinho na nossa mão, e eis que, de repente, se não nos achatamos de encontro a um enorme caminhão, foi naturalmente porque o anjo da guarda se meteu pelo meio. É que numa daquelas curvas fechadas da serra o motorista do mastodonte vinha majestosamente na contramão, sem motivo nenhum, à toa, porque preferia. E às nossas exclamações enfurecidas, o facínora botou na janela a cara inchada, o olho vermelho de bêbedo, fez um gesto de enfado e continuou a subida, sempre na contramão.

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Casos como esse acontecem de minuto a minuto em todas as estradas do Brasil. E nem em todos o anjo da guarda tem tempo para intervir. Evitá-los não é apenas uma questão de policiamento, pois nesse caso seria preciso pôr um guarda a cada quilômetro de estrada, ou menos, o que evidentemente é impossível. Creio que a única solução, embora de longo prazo, é promover uma campanha de educação de motoristas, ao mesmo tempo que se tornassem mais severas as exigências na hora de se fornecerem as carteiras de habilitação.

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Sim, porque os grandes males dos motoristas no Brasil são dois: o analfabetismo e o alcoolismo. Chofer analfabeto como é que se pode capacitar da importância, da gravidade das convenções que determinam as regras do trânsito nas estradas? A única lei que ele conhece é a lei do jângal, o feroz individualismo de quem ignora o direito dos outros. Pois a aceitação das regras que permitem o convívio pacífico dos homens em sociedade é, principalmente, um problema de cultura. Trocando em miúdos: só se devia dar carteira de motorista ao indivíduo capaz de ler, compreender e cumprir as convenções básicas do trânsito — mão e contramão, ultrapassagem em curvas, luz baixa, luz alta, buzina, via preferencial, etc. — regras tão simples, mas que a grande maioria dos motoristas que andam por aí ignora, ou das quais só tem uma noção muito vaga. Quem viaja como eu tenho viajado por essas estradas do interior do Brasil, entende bem o que estou falando. São estradas estreitas, perigosas, escalando serras alcantiladas, mas onde o maior inimigo que o motorista encontra não é a ladeira, a via estreita, a derrapagem, o atoleiro, e sim o próprio motorista seu colega. Que corre quando lhe dá na veneta, que só anda pelo espinhaço da estrada para poupar o pneu, que dá curva sem pensar na mão porque é mais fácil cortar a curva, e encurta caminho.

Mas não basta exigir do candidato à carteira um conhecimento regular do código do trânsito — resta ainda o problema do alcoolismo. Teria que haver punição grave, irreversível, para chofer apanhado bêbedo na direção de um carro. Ah, o alcoolismo contumaz desses criminosos do volante. Não sei se é a monotonia do trabalho, se é o frio da madrugada nas estradas, se é o convite irresistível dos milhares de botecos postos de alcateia à beira do caminho, mas se um comando médico fizesse um circuito de inspeção, verificando a dosagem de álcool no sangue dos motoristas que encontrasse pelas nossas rodovias, chegaria a constatações assombrosas.

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Noventa por cento dos acidentes de automóvel têm uma causa única: irresponsabilidade do motorista. E — esta a minha tese — essa irresponsabilidade é filha principalmente da ignorância ou do alcoolismo — ou das duas coisas juntas.

Creio também que outra medida capaz de diminuir a cota assustadora de acidentes em nossas ruas e estradas seria a lei penal encarar com severidade maior a punição dos responsáveis por atropelamentos que ferem ou matam alguém. Quando o motorista é culpado num acidente, deveria responder pela morte ou ferimento como um criminoso comum, como qualquer outro assassino. E se considerar circunstância agravante o hábito tão generalizado da fuga do atropelador — hábito esse que se deve às incompreensíveis disposições sobre o flagrante que constam da nossa legislação.

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Nos últimos dias de dezembro de 1960 um desastre horrível abalou a cidade do Rio: um ônibus cheio de gente resolveu atravessar indevidamente a linha do trem na avenida Brasil, — embora estivesse o sinal fechado, luz vermelha e a campainha de aviso tocando! — Foi apanhado pela composição, é claro, morreram cerca de dez, ficaram feridas algumas dezenas de pessoas. O motorista — que por sinal fugiu — diz-se que estava alcoolizado. Ainda não o encontraram. E quando o encontrarem que se fará? Tomam-lhe a carteira, talvez o processem. Que se faria contra um tarado que matasse dezenas de pessoas por pura maldade e irresponsabilidade? 30 anos de cadeia seria pouco, na boca de todo mundo. Mas esse — só porque matou com roda, em vez de matar com punhal ou tiro, se pegar três anos já será um espanto.

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Falta falar nos meninos ricos com delírio de velocidade que fazem das rodovias pista de corrida. Mas esses, piores que os ignorantes, pois sabem ler e escrever, ficam para outro dia, que o assunto é grande.

rachel-de-queiroz
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