O espetáculo é amargo: vê-se o pobre desgraçado, mais uma caveira do que um homem, os olhos fundos e de fogo, pertencendo já muito mais à morte do que à vida. E o queixume dele ainda é mais triste do que a figura: está assim, naquela miséria, já correu tudo quanto é hospital do Distrito, não encontra uma cama que o receba, não acha um cantinho onde morrer. Os hospitais de tuberculosos não o podem acolher porque já vivem estourando pelas costuras, multiplicados por dez, não dariam conta da freguesia; e os outros, nem que tenham vagas, ― se o doente logra passar pelo exame médico da porta não passa pelo exame na enfermaria: logo se descobre o seu mal e não lhe dão internamento.

Ouvindo isso, a primeira reação da gente é de revolta e nos juntamos ao clamor do enfermo contra a malvadeza dos médicos que tão mal cumprem o seu juramento, contra a desumanidade desses diretores de hospital capazes de negar um leito a um infeliz já nas vascas da morte e que irá se acabar onde? Nos bancos dos jardins, nas sarjetas, nos albergues noturnos ― ou, ainda pior, volver à promiscuidade forçada da vida em família pobre, contaminando mulher, filhos, irmãos?

Haverá coração que não se comova ao saber que diariamente, nos hospitais da Prefeitura do Distrito, na Santa Casa e em todos os outros nosocômios do Rio, se nega internamento a uma infinidade de tuberculosos que, sem o recurso do leito de indigente, são praticamente atirados à rua, devolvidos à miséria de onde vieram sem a menor esperança de socorro? E isso parece desumano, em verdade, diabolicamente desumano. Nem se acredita que tenham entranhas de cristão os responsáveis por tão gelada crueldade.

Agora o que a gente não pensa, nessa revolta pouco meditada, é no lado avesso da questão, na outra face do assunto. Porque se nos colocarmos no ponto de vista da direção dos hospitais, veremos que não há realmente a menor possibilidade de se receberem tuberculosos nas enfermarias comuns de clínica médica. Nenhum médico que tenha consciência profissional ousará internar doentes do peito numa enfermaria, cheia de outros doentes, ― esses recuperáveis, e que não podem correr o risco da contaminação do mal terrível. E a única solução é negar o internamento, é dizer ao pobre diabo que vá bater a outra porta, que por amor dos outros é mister que se mostre tanto desamor a ele.

Já se faz muito na campanha contra a tuberculose. A Cruzada Nacional contra a Tuberculose, mantida e dirigida por particulares, tem feito milagres, tem realizado heroísmos. Os poucos hospitais que o governo destina a esse fim também fazem o que podem. Mas no mar de tísicos em que navegamos, quão pouco é tudo que se consegue realizar! E além do mais, primeiro, e com toda razão, vamos cuidar dos que ainda têm uma possibilidade de cura, deixando para o fim aqueles que já estão marcados pela morte próxima.

Assim todos têm razão: os que se queixam porque morrem à míngua, os que se negam porque não os podem valer. Os hospitais especializados não chegam, os não especializados não podem. E enquanto isso os pobres tísicos vão morrendo à toa, sem ao menos a derradeira injeção de óleo canforado que hoje em dia é servida em lugar da vela aos moribundos. E ao mesmo tempo em que morrem vão passando adiante a terrível herança, pois crianças dormem na mesma cama com os doentes, moços e moças apanham a moléstia dos pais que não dispõem de recursos para se isolar deles ― e muitas vezes até ignoram o crime que cometem contra os filhos.

E há tanta riqueza por aí! Tanto palácio, tanto edifício de luxo, tanta obra suntuária inútil, que custam o bom dinheiro dos contribuintes. Não haverá um deputado, um prefeito, um presidente, uma autoridade que se disponha a reservar uma beirinha de orçamento para a compra de um casarão, um quintal, algumas camas e um ordenado de enfermeira? Não digo um hospital ― apenas um recolhimento. Não seria uma solução, mas já seria um bom arranjo. E dispondo desse teto e dessa cama, os tuberculosos condenados da cidade, aqueles aos quais não resta mais esperança de cura, teriam pelo menos o direito de morrer em paz.

rachel-de-queiroz
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