Na areia branca, Mariano dorme. Não tem mulher nem amores, nem trabalho nem ambição, nem dinheiro, nem roupa, nem casa. Bem, casa tem do certo modo, pois reparte a cama com um vigia noturno, que só dorme de dia. Poderia morar com a mãe se quisesse ― com a mãe e o padrasto — mas acima de tudo Mariano é uma alma livre e não aceita sujeição. E até mãe, se dá casa à gente, quer ficar governando; quanto mais padrasto. Mariano não quer pai nem senhor, nem chefe, nem autoridade. Vive sozinho, vagabundeia sozinho, apanha algum biscate isolado quando precisa de alguns cobres, mas nasceu só e só há de morrer. Sujeição, nem de bloco de carnaval tolera. Podia ter entrado em muitos blocos; podia, por exemplo, ter entrado nos Unidos da Cova da Onça, que foi, sem favor, o bloco mais bem ensaiado e mais chique que a Ilha deu este ano. Mas se entrasse, tinha que cantar a cantiga certa, tinha que fazer fantasia igual à dos outros, tinha que andar dentro do quadrado de corda, não podia se embriagar, não podia dizer graça às moças... Sujeição por demais para Mariano. Com ele é na liberdade. Chega o Carnaval, arranja uma camisa de meia, um boné de marinheiro e cai na orgia. Um ano aí se fantasiou de mulher, mas não gostou. Era até uma baiana alinhada, de saia de chitão e torso de seda. Mas dentro dela, Mariano teve que meter a mão na cara de vários cabras atrevidos e acabou apanhando do último, que era forte. E pensando bem, o mal quem fazia era ele mesmo, perdendo o respeito às suas barbas de homem e se metendo debaixo de uma saia; os outros, quando diziam pilhérias, não era com o homem Mariano que estavam falando, mas com a catraia velha que a saia apresentava.... Hoje não tolera que ninguém faça referência à fantasia; e nem às mãos de São Jorge se desfaz das calças. Não admite sequer um saiote de papel crepom em banho de mar a fantasia.

Agora, estirado na areia da praia do Barão, com o sol da manhã no rosto, Mariano dorme. Vestiu o calção de banho para o guarda não incomodar. Aliás não foi propriamente isso ― apenas tirou a roupa de cima; o calção já estava com ele, pois no quarto do vigia não há nada trancado e Mariano sempre carrega consigo o mais que pode do seu guarda-roupa. Além do mais, já é antigo nesse truque de dormir na praia fingindo que toma banho de sol, nas horas em que o vigia ocupa a cama. É o único lugar onde se pode dormir à vontade, a qualquer hora, sem dar cana e sem mandarem circular. Por isso mesmo anda sempre prevenido, pois não sabe quando lhe irá dar o sono.

Puxa vida, como farreou! Como bebeu, como cantou e pulou! Até amar amou, uma cabrocha fardada de soldadinho de Flit, de calção curto de cetim e talabarte encarnado. Sozinha como ele neste mundo ― ou pelo menos como tal se dizia. Gastaram um bocado ― mas dinheiro ele tinha, felizmente. Não foi à toa que durante todo o mês de janeiro pegou no pesado, servindo de caixeiro numa quitanda. Chegou a ficar com as mãos calejadas de tanto empurrar carrinho de carvão. E com um galo na cabeça do peso do caixote de compras, e com os bofes amargosos de tanto aguentar abuso das madames. Mas ganhou e recebeu.

Na terça-feira de tarde brigou com a cabrocha. Ela já estava tomando ares de dona, implicando quando ele bebia, querendo escolher bonde e escolher barca, falando que se ele quisesse podia ir dormir no quarto dela. Não senhora, obrigado. Para isso tem a praia. Dormir só com o anjo da guarda.

E agora estava ali, feliz, vazio e estrompado. Com a boca ruim do tanto que bebeu, com as pernas um trapo do tanto que pulou, com a fala tão rouca que não dava um ai; sem vintém sequer ― a última prata de cruzeiro ficou no botequim pagando uma média.

Sente um formigar na cabeça ― há de ser algum bichinho miúdo da areia, reúne os seus últimos restos de energia e mete os dedos com força pelo cabelo louro escorrido; cai o bichinho, e com ele caem os últimos confetes que Mariano ainda trazia no cabelo e que vão pousar no chão em torno do seu rosto adormecido, como um halo ao redor do rosto de um santo.

E Mariano novamente dorme, limpo dos restos do Carnaval, iniciando a sua quaresma.

rachel-de-queiroz
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