Primeiras vezes

Vista dos morros Pão de Açucar e Urca, 1946. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Antes de puxar o assunto, é preciso deixar claro que estamos falando de estreias de cronistas em jornal. Ou, mais especificamente, de inícios de colunas, já que são raras as primeiríssimas crônicas com que nossos escritores se apresentaram ao mundo. Transpiração, portanto, só a da labuta criativa. Reduzidas as expectativas que o título poderia sugerir, vamos à seleção de primeiras vezes.

Há pouco, Graciliano Ramos chegou no Portal com um apanhado de 20 crônicas. Entre elas, temos a primeira da série publicada no jornal alagoano O Índio, de janeiro de 1921. Assinada com o pseudônimo de J. Calisto, “Traços a esmo” apresenta o escritor que passaria a ocupar aquele canto de página. Graciliano não quis entabular conversa sem antes deixar claras as suas intenções: “Se tiveres paciência de ouvir-me, bem; se não, põe o teu chapéu e raspa-te”.

O que parece apenas mau-humor vai ganhando ares irônicos com as elaborações peculiares que o cronista faz – incluindo uma imagem bastante original do ofício, comparado ao de um ambulante que, de porta em porta, oferece unguentos e pomadas caseiras. A crônica pode ser um alívio para os calos da consciência do leitor, mas, se não for, ao menos deixará a sensação de ter recorrido a uma botica: “Sempre será uma consolação, que talvez te sirva para alguma coisa”.

Em 1945, Rachel de Queiroz estreou na famosa última página de O Cruzeiro. Com a “Crônica nº 1”, obedecendo às regras da cortesia, ela se apresentou à entidade coletiva chamada leitor: com mais de 100 mil exemplares da revista circulando, a autora se sentia exposta diante de um imenso auditório. O que poderia aquela “mulher rústica, muito pegada à terra, muito perto dos bichos” oferecer às multidões? “Apesar, entretanto, de todas essas dificuldades, tenho a esperança de que nos entenderemos”, escreveu. E estava mesmo certa, pois a coluna foi publicada por 30 anos ininterruptos.

Menos prolífica foi a carreira de Otto Lara Resende na imprensa. Cronista tardio, o mineiro estreou na Folha de S.Paulo no dia do seu aniversário de 69 anos, em 1° de maio de 1991. “Bom dia para nascer” é a primeira crônica de uma sequência que durou até dezembro do ano seguinte, uma semana antes de sua morte. Com seu humor característico, Otto explica que a data é boa para nascer não por ser o Dia do Trabalho, mas por conta do feriado.

Em 1977, Maria Julieta Drummond de Andrade virou cronista sem querer, a convite de Humberto Werneck. O jornalista preparava uma capa em comemoração aos 75 anos de Carlos Drummond de Andrade para a revista Veja e encomendou um depoimento da filha do poeta. Meio reticente, Maria Julieta escreveu “Meu pai”, sem desconfiar de que aquele seria o primeiro passo de uma colaboração que durou uma década no jornal O Globo.

No caso de Antônio Maria, até o momento, ninguém foi capaz de encontrar a sua crônica de estreia, publicada aos 20 anos em algum jornal do Recife. Aludida em “Vigésimo aniversário”, temos apenas algumas dicas de como foi a primeira vez do cronista. Mas, para compensar, temos uma crônica de recomeço: em 1964, tendo vencido um período difícil e longe da imprensa, Maria assume uma coluna em O Jornal, o mesmo que o acolheu ao desembarcar no Rio de Janeiro, 24 anos antes. Em “Evangelho segundo Antônio”, o cronista desenha uma quase onírica gênese pessoal que remonta aos tempos bíblicos e se encerra com uma espécie de cartão de visita: “Com vocês, por mais incrível que pareça, Antônio Maria, brasileiro, cansado, 43 anos, cardisplicente (isto é: homem que desdenha do próprio coração). Profissão: esperança”.

Poucos meses depois, um infarto fulminante deu cabo da cardisplicência de Maria, que morreu de madrugada, nas calçadas de Copacabana. Quem sabe se para recomeçar em algum outro lugar...